Cultura

Por que discutir a foto na capa da ‘Folha’

Múltiplas visões, excelente. Múltipla exposição fotográfica para criar o que não existe, pera lá

Foto: Reprodução/Redes Sociais
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Em 2017, a revista alemã Der Spiegel incorporou a seu quadro de funcionários um prolífico free lancer. Claas-Hendrik Relotious havia, nos seis anos anteriores, produzido cerca de 60 reportagens de fôlego para o meticuloso semanário, dramas pessoais intensos nos cantos obscuros do planeta em meio a guerras, criminalidade e pobreza extrema.

Relotious fez por merecer a confiança. Em 12 meses, o recém-contratado venceu o Deutscher Reporterpreis, o quarto da carreira, e o European Press Prize, além de ser escolhido o “jornalista do ano” pela filial da CNN no país. Seus relatos eram pungentes: crianças sequestradas pelo Estado Islâmico, a vida de um prisioneiro de Guantánamo e a escravização de órfãos sírios na Turquia, entre outras. Só havia um problema. Grande parte ou quase tudo era mentira.

Personagens e relatos que preenchiam os textos e emocionavam os leitores nasciam de sua imaginação. Uma longa investigação interna confirmou as trapaças restou a uma envergonhada Der Spiegel pedir desculpas ao público e anunciar a demissão de uma de suas “estrelas”. Acabava, em 18 de dezembro de 2018, uma meteórica carreira.

A saga de Relotious me veio à mente por conta da polêmica provocada pela imagem da capa da Folha de S. Paulo da quinta-feira 19 na qual o presidente Lula parece alvejado por um tiro no peito. Aposto uma selfie em múltipla exposição que haverá nas redes sociais quem me acuse de exagero. Adianto a minha réplica: menos, senhores, senhoras e senhorxs. Exagero nenhum. Como o repórter alemão, a fotógrafa produziu – e a Folha avalizou – uma miragem, um engodo. A foto não existe, nasce de uma montagem, que o jornal e a autora preferem chamar de dupla (ou múltipla) exposição. Um clique, espera, outro clique e temos a magia. Não é fotojornalismo nem arte, como argumenta a profissional, apenas farsa.

Certas regras impõem ao jornalismo, e não só, os limites da licença poética. Embora Maradona seja autor de um dos mais memoráveis gols em uma Copa do Mundo, em 1986 contra Inglaterra, a “mano de Dios”, usar as mãos, à exceção do goleiro, continua proibido no futebol. No jornalismo, a bússola está no apego à verdade factual, ao registro documental. Apesar de reconstrução imprecisa e fragmentada dos acontecimentos, imperfeita, portanto, a reportagem, em texto e imagem, é ou deveria ser contida por essas fronteiras.

Inventar frases, ao modo do alemão Relotious e, consta, da revista Veja nos anos 1980 e 1990, ou publicar imagens manipuladas como se fossem instantâneas é o avesso do avesso do avesso. Percebam, não trato da verdade absoluta, objeto de interminável debate entre os filósofos, mas de algo relativamente simples: interpretar os fatos, não os criar. Ultrapassado o rubicão, vale tudo e vale nada. Desta forma, qual a relevância da mídia? O que diferencia os jornalistas, tão ciosos de suas funções, da equipe do gabinete do ódio, dos criminosos do submundo da internet e dos fofoqueiros da internet?

Evitemos a armadilha do julgamento das intenções. Muitos enxergaram na montagem a expressão do desejo de fuzilamento de Lula, violência descabida, outros uma alegoria da resiliência do petista, de sua capacidade mitológica de sobrevivência na adversidade.

Certas críticas, desconfio, brotam da empatia com o alvo, sem trocadilhos, da fotógrafa. Estivesse Bolsonaro na mira das mesmas lentes, subjugado à mesma técnica, a reação dos indignados provavelmente seria outra, júbilo e tapinha nas costas.

Também não é o caso de discutir se o jornal deveria ter sido mais consciencioso e levado em conta a atmosfera tóxica no Brasil. O fotojornalismo, ou melhor, o jornalismo cometeria suicídio caso se apegasse a certos pruridos, à conveniência ou à contingência. Seu mérito está em produzir diferentes significados, a depender do receptor: dolorosos, obscenos, chocantes, desafiadores, deploráveis, insurgentes, bajuladores. Quanto mais madura e enraizada a democracia, menos tolerante e permeável será a opinião pública ante os excessos. Múltiplas visões, excelente. Múltipla exposição fotográfica para criar o que não existe, pera lá.

Há um abismo entre a montagem da capa da Folha e uma foto publicada pelo rival O Estado de S. Paulo poucos anos atrás e que igualmente provocou uma discussão acalorada. Na imagem, um soldado parece atravessar a espada no ventre da então presidenta Dilma Rousseff, já acossada pela campanha golpista. Mau gosto? Perseguição? Incitação ao crime? Cada um interpreta a seu modo, mas a percepção individual não põe em dúvida a credibilidade do trabalho do fotógrafo.

Nos últimos quatro anos, a perda de prestígio e em especial de dinheiro, a concorrência das big tech e a ameaça autoritária de Bolsonaro levaram o jornalismo autodeclarado profissional a se lançar em uma cruzada contra as fake news e a máquina de desinformação. As empresas redescobriram princípios basilares da profissão, reforçaram controles, coibiram excessos e formaram pools contra o apagão de dados oficiais. Até, vá lá, transformaram em inovação uma redundância, as agências de checagem, elevadas à categoria de supremo tribunal da mídia (nunca me canso de perguntar: quem checa o trabalho dos checadores?).

Pelo visto, tudo não passava de marketing.

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