Bruna Santiago

Enfermeira, mestre em Ambiente e Saúde, docente de Enfermagem, empreendedora em Treinamento Profissional e em Gestão de Serviços de Saúde e de Enfermagem

Opinião

Por que até hoje a enfermagem não tem piso salarial? A demografia explica

A verdade é que a enfermagem não tem salário decente porque a categoria é majoritariamente formada por mulheres

Os técnicos e auxiliares de enfermagem representam 70% das vítimas na área - Imagem: Breno Esaki/SS/GOVDF
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O trabalho da enfermagem se notabilizou na pandemia, assim como as demandas da categoria por um piso salarial justo, uma jornada de trabalho decente e pelo direito ao descanso digno. A sociedade conseguiu perceber, de forma cristalina, a imprescindibilidade da maior categoria profissional da saúde durante a emergência de saúde pública, ao mesmo tempo em que foi apresentada às difíceis condições de vida e à falta de reconhecimento ao serviço prestado por essas trabalhadoras e trabalhadores.

Com assimetrias e fraturas expostas, a profissão perpassou a invisibilidade e alcançou o centro da notícia e do debate político. Depois de aproximadamente 30 anos de lutas e reivindicações sem desdobramentos práticos, nos últimos três anos houve um avanço meteórico da enfermagem em direção ao seu principal objetivo social e econômico: erradicar os salários miseráveis que são praticados no país. Afinal, já não é mais possível aceitar uma maioria que trabalha mais de 44 horas por semana, cuidando de centenas de pacientes, por salários que não transcendem a órbita irrisória dos mil reais mensais.

Desde o início da pandemia, diante da pressão das redes sociais e das ruas, o Congresso Nacional respondeu à sociedade e aprovou uma lei e duas emendas constitucionais para assegurar o direito a um piso minimamente condizente com a complexidade do trabalho da enfermagem. Mesmo em um país conflagrado e dividido, a categoria conseguiu obter mais de 91% de adesão em todas as votações relativas ao tema na Câmara e no Senado. As medidas foram prontamente ratificadas pelo Poder Executivo, em reconhecimento ao apoio praticamente unânime alcançado no parlamento.

Isso se deve ao trabalho incansável das entidades e, especialmente, da categoria, mas também ao reconhecimento tácito de que a valorização enfermagem é condição elementar para a saúde da população. Contudo, não obstante às vitórias políticas acachapantes da enfermagem, combinadas com expressa previsão constitucional e comprovada viabilidade econômica, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu suspender liminarmente a aplicação do piso em setembro de 2022, justamente no dia em que o direito efetivamente entraria em vigor. Para tanto, foi levado a termo o argumento de entes federados e empresários bilionários, que se dizem incapazes de pagar um salário justo aos profissionais que, concretamente, fazem os sistemas público e privado de saúde funcionarem.

Assim, o pior da pandemia passou, mas a situação da enfermagem permanece igual, com salários notadamente injustos para trabalhos exorbitantes. Agora, sem rodeios, sabe por que isso acontece? Não é porque os empresários não podem pagar, não se trata de inconstitucionalidade ou qualquer motivo alegado no processo que tramita no STF. A verdade é que a enfermagem não tem salário decente porque a categoria é majoritariamente formada por mulheres. Isso mesmo, a enfermagem não tem salário justo por ser feminina. Mesmo sendo maioria na força de trabalho da saúde brasileira e tendo perpassado tantas lutas pela igualdade de direitos, a disparidade entre os gêneros continua.

Em uma profissão presente em todos os municípios e fortemente inserida no SUS, aproximadamente 86% das profissionais de enfermagem são mulheres, a maioria é preta. Historicamente discriminadas, subjulgadas e desvalorizadas. São obrigadas a trabalhar em dois ou três lugares, para conseguir sustentar a família. Passam horas no transporte público, pois moram longe e não têm carro. Além de trabalhar fora, acumulam a responsabilidade de cuidar da casa e dos filhos, pois não conseguem pagar quem possa ajudar. São trabalhadoras essenciais para a saúde da coletividade, mas empobrecidas pela dinâmica de uma sociedade cruel, injusta, misógina e desumana.

Quando o país fez um chamado à enfermagem para enfrentar a pandemia, a resposta incondicional dessas mulheres foi sim. Mas quando elas fizeram um chamado ao país, não receberam a reciprocidade merecida até agora. Assim, a negação persistente ao direito dessas pessoas se configura como expressão rasa da misoginia, do preconceito e da discriminação que ainda imperam no país, mas que devem ser abolidas, em nome do Estado Democrático de Direito.

De acordo com os dados mais recentes do IBGE, as mulheres recebem em média 23,5% menos do que os homens no Brasil. Elas trabalham em média 73,1 horas por semana, enquanto eles trabalham por 52,6 horas semanais. São sub-representadas na política, pois apenas 13,5% das deputadas federais são mulheres. Por outro lado, são as vítimas em 84% dos casos de violência doméstica. Todos esses índices estão interligados e só podem ser superados a partir de uma política de valorização do gênero feminino. Portanto, a efetivação do piso da enfermagem pode contribuir significativamente nesse sentido.

Em que pese as diferenças regionais do Brasil, a definição de um piso salarial mínimo para uma categoria desse porte não visa igualar salários para estados e municípios diferentes, que já pagam a mais do que o valor definido, mas apenas estimar um valor mínimo para erradicar condições miseráveis, de forma essencial. Como exemplo, podemos citar os estados do Maranhão e do Ceará, que praticam os melhores salários para os professores, apesar de não serem os estados mais ricos do país. Sobretudo, isso significa que valorizar as mulheres é uma questão de escolha política.

Em suma, apesar dos avanços obtidos pelas mulheres nos últimos anos, o Brasil continua sendo um país misógino e machista, com elevados níveis de violência, desigualdade salarial e falta de representatividade política. Portanto, o piso salarial da enfermagem é uma luta imprescindível para a justiça e a igualdade de gênero.

Diferentemente do que a maioria pensa, a economia não é uma ciência exata, é uma ciência social aplicada, que dispõe sobre a melhor escolha entre as opções disponíveis. Neste momento do país, seguramente, a melhor escolha econômica, jurídica e social é efetivar o piso da enfermagem, sem mais demora.

Tudo o que o STF pediu que fosse feito para destravar o piso da enfermagem, foi feito. Existe amparo legal, provisão de recursos e sistemática estabelecida para a consecução dos pagamentos. Portanto, não existem mais motivos para impedir a concretização desse direito para as mulheres e o benefício para toda a saúde brasileira.

Todos os elementos estão dados. Que a Justiça não falte ao país.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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