

Opinião
Pobres e democracia
Eis os compromissos primordiais do próximo governo Lula


Com a vitória nas urnas, dois grandes compromissos se estabelecem como os mais urgentes para o governo Lula. O primeiro é equacionar a miséria ao melhorar a qualidade de vida dos pobres. O segundo: garantir a manutenção da democracia constitucional como regime político do País.
Dar novo vigor à democracia passa necessariamente por garantir que a maioria, aqueles com renda familiar inferior a dois salários mínimos por mês, seja contemplada em primeira ordem pelas decisões políticas do novo governo. Levantamento da consultoria Tendências divulgado no início do ano apontou que 51% dos brasileiros compunham as classes D e E. Portanto, mais da metade da população está na mira da vulnerabilidade. Não será possível regenerar a democracia sem priorizar as necessidades dessa faixa expressiva da população.
Além disso, o compromisso do novo governo com os pobres passa pelo fato de ter sido este o segmento da população que deu a maior parte dos votos à chapa encabeçada por Lula. Há também a questão humanitária, que exige colocar o combate à miséria como prioridade. Para tanto, é preciso adotar medidas no campo econômico que promovam desenvolvimento sustentável e geração de empregos, equilibrando responsabilidade fiscal com responsabilidade social. Isso passa pela aprovação da PEC da Transição, que deve garantir recursos para o resgate do Bolsa Família, de 600 reais mais um adicional de 150 por criança até 6 anos. Outras medidas fundamentais dependem da aprovação da PEC, entre elas o aumento do salário mínimo em 1,4% acima da inflação, a recuperação do programa Farmácia Popular, o restabelecimento da merenda escolar, além da construção urgente de creches.
Para a realização das promessas, Lula terá pela frente a tarefa de reconstruir uma estrutura econômica e social mais complexa do que esta que vigora hoje. A realização desse primeiro eixo central do programa eleito, de combate à miséria, terá de enfrentar um quadro de dificuldades nas relações com o Congresso e a destruição do Estado e do serviço público promovidos pelo governo Bolsonaro nos últimos quatro anos.
A tarefa de reconstrução é monumental, mas tem de ser empreendida, para que um novo modelo de sociedade emerja e tire o Brasil da posição de mero exportador de commodities agrícolas ou minerais para alçá-lo a um protagonismo em outros campos, como se viu em outros momentos. À medida que o País dedica sua economia exclusivamente à produção de commodities, aprofunda suas desigualdades e solidifica uma estrutura social composta de uma diminuta classe de bilionários, assessorada por uma pequena classe média e uma quantidade avassaladora de pobres. Esse modelo econômico nos coloca na perspectiva de voltarmos ao Brasil da República Velha. Cairíamos da condição de país em crescimento para aquela de uma nação fadada ao subdesenvolvimento.
Abraçadas essas questões, o Brasil precisa resgatar sua democracia constitucional, outro compromisso da chapa Lula-Alckmin com a sociedade, que tem de ser entendido como prioridade. E isso significa ir muito além da garantia do resultado das urnas, barrando movimentos antidemocráticos – individuais ou coletivos, pontuais ou perduráveis. A democracia do pós-guerra, chamada democracia constitucional, é uma composição entre soberania popular, manifestada pelas eleições e processos decisórios majoritários, e a garantia de direitos dos indivíduos e das minorias. Tudo isso amparado pela lei, grande instrumento que o governo Lula terá para realizar a defesa da democracia.
O restabelecimento de um ambiente democrático significa impessoalidade das decisões, sem abusos, e a garantia de que todos sejam submetidos ao rigor do processo jurídico. Isso inclui não tolerar a continuidade de crimes como os praticados pelo populismo de extrema-direita. Será preciso garantir que casos como o de Roberto Jefferson e seu ataque à Polícia Federal sejam devidamente punidos, assim como o de Carla Zambelli e sua ameaça armada a um homem negro, ou ainda a ação coletiva de policiais rodoviários federais nas estradas do Nordeste, impedindo eleitores de votar. Todos esses episódios ocorridos no períodos pré e pós-eleições são criminosos e devem ser tratados como tais. Assim como não se pode utilizar os recursos da democracia constitucional como ferramentas a serviço de revanchismos, não se pode tergiversar sobre a aplicação dos instrumentos legais. Ainda mais em momentos históricos como o que atravessamos, nos quais é preciso combater com coragem as formas emergentes de fascismo. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1234 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pobres e democracia”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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