Beta Boechat

Criadora de conteúdo, publicitária e empreendedora. Sócia- fundadora do Movimento Corpo Livre e integrante do Conselho Jovem do Pacto Global da ONU.

Opinião

Pelo direito da liberdade dos passarinhos na gaiola

Tenho saudades do Twitter. Não deste que adormeceu, mas daquele que um dia voava com mais autonomia e responsabilidade

Pelo direito da liberdade dos passarinhos na gaiola
Pelo direito da liberdade dos passarinhos na gaiola
Foto: SAMUEL CORUM / AFP
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O saudoso Twitter acabou no Brasil. Pelo menos por enquanto. Confesso que constato esse acontecimento com certo pesar. Com o nascimento de tantas redes de vídeos, fotos, canais, stories e um reality show de câmeras ligadas 24 horas reportando as coisas mais banais e mais extraordinárias da nossa vida, o Twitter ainda guardava um caráter mais simples, até mais ingênuo eu diria, da nossa persona digital. Atrás de imagens desenhadas e arrobas que passavam longe dos nossos documentos oficiais, a rede social do passarinho representava um lado B da nossa personalidade, uma persona que, muitas vezes, nem nossos melhores amigos tinham acesso. Sempre brinquei que o Twitter era a rede do desabafo, da lamentação, do fetiche de rir das nossas próprias desgraças. Mesmo com as notícias de última hora e o aparente contato direto com marcas e celebridades, eram os memes, os fios colocando em ordem os assuntos mais banais, as experimentações de narrativas e pontos de vista quase surrealistas, que representavam o ouro dessa rede. Mas, das conversas descompromissadas de calçada e dos arroubos adolescentes contra tudo e todos, essa “praça social” sempre apresentou seus perigos.

O passarinho costumava ser bastante permissivo. Num universo de redes family friendly, lá no Twitter, era possível ter acesso a uma internet com bem menos filtros. Uma rede que permitia do anonimato ao conteúdo adulto, sem muita vontade de se adequar ao que era esperado de aplicativos por aí. Tão poderosa e relevante que, mesmo com os conteúdos +18 rolando soltos, nunca foi expulsa da loja da Apple, loja essa que, até hoje, não tem sua própria versão do app para “apenas fãs”. Tanta liberdade era como uma fonte de energia elétrica: acendia infinitas lâmpadas criativas em diversas casas pelo mundo, mas quando a força era descontrolada, tinha o poder de causar sérios problemas.

Na época do Jack, o fundador, o Twitter tinha alguma consciência dessa força, e tentava criar suas represas. Afinal, a gente sabe bem que não existe essa utopia de “liberdade irrestrita”. Numa sociedade desigual, suspender as regras é automaticamente impor as regras daqueles que mandam mais. Só grita pela falta total de leis aqueles que têm certeza da sua capacidade bélica de sobreviver na selva. Nossa Constituição é uma dessas represas, ou a maior delas aqui pelas nossas bandas. Mas antes de chegar nela, as redes costumam tentar resolver seus problemas dentro de casa, com regras próprias pra tentar moderar o debate. Até que essas regras não existem mais – ou pelo menos, não pra todo mundo.

Ainda fico me perguntando se a visão de Elon para o Twitter era romântica ou apenas irresponsável. Para alguém que, mesmo com seu provável brilhantismo, não teve que lutar tanto assim pra ter o seu lugar ao Sol, saber que a maioria das praças digitais que o proíbem de expurgar seus desejos mais adolescentes de falar o que quer, sem qualquer tipo de consequência, parece um completo absurdo. Quando sua vida, sua existência, sua cultura, não estão ameaçadas, lutar pelo direito de brincar com supremacia e extermínio parece ser uma excelente ideia. Mas, como todo bom menino dono da bola, a liberdade irrestrita era defendida… apenas pra ele. No mundinho do X, preconceito é opinião, holocausto é uma anedota, racismo era só uma forma de se expressar. E se algum anunciante ficasse chateado e tirasse seu apoio, faça como um bom adolescente: saia xingando, gritando, batendo pé e fechando a porta. Até chegar a hora do jantar, a fome bater e você precisar sentar na mesa com o rabo entre as pernas.

Ok, não sejamos injustos. A versão delirante do Twitter tinha sim seu limites. Ali, era proibido meter a família no meio. Mas não qualquer família, apenas a família do dono. Revoltado contra a filha que apenas decidiu ser quem é, Elon resolveu impor o único limite na rede, o da transfobia. Não o que combate, mas o que incentiva. Se xingamentos e ofensas a raça, gênero e nacionalidade ganhavam vistas grossas, a palavra “cisgênero” foi prontamente banida. Nada pior nesse mundo do que alguém ser acusado de se identificar com o gênero que o foi atribuído ao nascer. O mais curioso desse caso é perceber o quanto nos importamos com regras que nos atingem diretamente. De todas as regras que uma sociedade minimamente civilizada julga necessárias, a única imposta no X era a que apertava o calo em casa.

Acho que não é preciso apontar a ironia, mas é necessário jogar luz sobre o quanto nossas experiências pessoais afetam nossas urgências no mundo. O quanto nossas subjetividades moldam a forma como a gente vive. O quanto muitos de nós se debatem para não reconhecer nossos próprios narizes – tá na cara, mas a gente se acostumou a não ver.

Sou inflexivelmente a favor da liberdade de expressão. Luto pelo direito de pessoas serem, pensarem, agirem de formas que eu, particularmente, considero burras ou desinformadas. Não que elas sejam per se – meu modo de ver o mundo não é o único, nem o mais correto. Mas luto também para que as regras possibilitem que eu também tenha o direito de ser livre, até pelo direito de ser burra na visão de outrem. Já diria a famosa canção, disciplina é liberdade. Um aparente paradoxo, mas fundamental para que a liberdade de expressão possa ser realmente livre para todos.

Tenho saudades do Twitter. Não deste que adormeceu ontem, mas daquele que um dia voava com mais autonomia e responsabilidade. Do que transportava a mesa do bar para o digital. Do que nos deixava acompanhar um episódio como numa festa do pijama. Do que nos deixava debater horas sobre assuntos que poucas vezes faziam sentido fora dali. Do que respeita as leis brasileiras, não daquele que só abaixa a cabeça quando quem manda é americano ou chinês. E ainda torço para que o passarinho volte a se libertar da gaiola que, acreditando abrir a porta, passaram-lhe foi um enorme cadeado com um pomposo X gravado no metal.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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