Henry Bugalho

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Henry Bugalho é curitibano, formado em Filosofia pela UFPR e especialista em Literatura e História. Com um estilo de vida nômade, já morou em Nova York, Buenos Aires, Perúgia, Madri, Lisboa, Manchester e Alicante. Por dois anos, viajou com sua família e cachorrinha pela Europa, morando cada mês numa cidade diferente. Autor de romances, contos, novelas, guias de viagem e um livro de fotografia. Foi editor da Revista SAMIZDAT, que, ao longo de seus 10 anos, revelou grandes talentos literários brasileiros. Desde 2015 apresenta um canal no Youtube, no qual fala de Filosofia, Literatura, Política e assuntos contemporâneos.

Opinião

Peladões universitários, golden shower e Elsa, a lésbica

Bolsonaro foi eleito, em grande medida, por causa de sua cruzada moral

Bolsonaro e Damares (Foto: ABr)
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Durante o carnaval deste ano, o presidente Jair Bolsonaro passou vergonha em nível mundial ao compartilhar o vídeo de uma “performance artística” em São Paulo. Esse vídeo, veiculado para os mais de quatro milhões de seguidores do presidente no Twitter, mostrava dois homens sobre um ponto de táxi. Eles dançavam diante de gritos da multidão, até que um deles introduziu um dedo no próprio ânus e, em seguida, abaixou-se para que seu parceiro urinasse em sua cabeça.

A internet veio abaixo com a cena explícita de golden shower, ou “ducha dourada”, exposta na conta oficial do presidente. O repúdio ao compartilhamento da cena foi absoluto e sugiram denúncias de quebra de decoro e até de improbidade administrativa que poderiam dar início a um processo de impeachment.

A resposta presidencial foi ainda mais chocante: “O que é golden shower?”

E mais uma vez, agora pela reação, Bolsonaro se tornou manchete – e piada – internacional.

A justificativa do presidente foi que ele havia se escandalizado com as imagens e sentiu que precisava denunciar obscenidades tantas. A desculpa não colou.

No final de abril deste ano, o ministro da Educação Abraham Weintraub anunciou um “contingenciamento” (um eufemismo para cortes) de 30% nos gastos discricionários das universidades e institutos federais com a seguinte justificativa: “A universidade deve estar com sobra de dinheiro para fazer bagunça e evento ridículo. (…) Sem-terra dentro do campus, gente pelada dentro do campus”, ou seja, aquilo que ele denominou de “balbúrdia”, como se tais ocorrências anedóticas representassem o dia a dia do ambiente acadêmico.

Para legitimar os cortes que poderão afetar o funcionamento de várias universidades brasileiras, algumas podem inclusive chegar a fechar as portas por falta de verba, o ministro da Educação apela para a moralidade. Aparentemente, para Weintraub, festas com gente pelada servem como argumento para um ataque ao ensino superior, aos professores e alunos universitários. A origem desta medida é essencialmente ideológica, de um confronto contra o marxismo cultural, que Weintraub, como bom discípulo de Olavo de Carvalho, já teve a oportunidade de explicitar em outras circunstâncias. Porém, de modo a apelar ao puritanismo do eleitorado do Bolsonaro, o ministro transforma os cortes num ato moral de decência, enfrentando a “balbúrdia”, punindo obscenidades.

Na semana passada ressurgiu uma antiga gravação da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, na qual ela mais uma vez ergue uma das suas principais bandeiras: a defesa das crianças contra a sexualização precoce. Damares apresenta um exemplo de como as crianças têm sido incitadas à erotização e a se tornarem homossexuais; segundo ela, a animação Frozen, da Disney, tem em uma de suas protagonistas, a princesa Elsa, um referencial de depravação moral. Segundo Damares: “Sabe por que ela [Elsa] termina sozinha em um castelo de areia… de gelo? Porque é lésbica! O cão está muito bem articulado e nós estamos alienados.”

Esta é a mesma Damares que em outro vídeo havia dito que “na Holanda os especialistas, que fizeram não sei quantas universidades, ensinam que o menino deve ser masturbado com sete meses de idade, para quando chegar na fase adulta possa ser um homem saudável sexualmente, e a menina precisa ter a vagina manipulada desde cedo para que ela tenha prazer na fase adulta. (…) Lá na Holanda, eles estão até distribuindo cartilhas ensinando como massagear sexualmente suas crianças. Isso está acontecendo no Brasil.”

As afirmações da ministra evidentemente não correspondem aos fatos, pois Elsa não é retratada como homossexual em Frozen e especialistas holandeses não estão ensinando que bebês sejam masturbados, inclusive esta última afirmação foi recebida com horror e incompreensão pela imprensa holandesa.

Qual é a relação entre o golden shower do Bolsonaro, os peladões universitários do Weintraub e a Elsa lésbica da Damares?

Há uma agenda moral muito clara que unifica esses três casos. Bolsonaro foi eleito, em grande medida, por causa de sua cruzada moral, apelando para a sensibilidade de evangélicos neopetencostais, de católicos tradicionais ultrarradicais e de um crescente segmento de jovens e adultos que se identificam como “conservadores”.

Em sua trajetória como parlamentar, Bolsonaro havia se envolvido em inúmeras polêmicas, várias delas relacionadas ao que ele chamava de “kit gay”, isto é, um suposto material para ser distribuído em escolas públicas que estimulariam crianças e adolescentes a se tornarem homossexuais. Suas eventuais aparições em programas de auditório na TV também eram vitrines para todo o Brasil da homofobia e da moralidade reacionária de Bolsonaro, defendendo um padrão ético e comportamental que só existe na imaginação destes conservadores de ocasião.

No horizonte moral do Bolsonaro e seus eleitores, tortura e violação de direitos humanos não deflagram questões éticas, particularmente se as vítimas forem comunistas ou criminosos pobres. Segundo disse o próprio Bolsonaro em entrevista, “violência se combate com violência”, portanto, brutalidade policial e execuções extrajudiciais, incluindo aquelas perpetradas por milicianos ou esquadrões da morte, são absolutamente aceitáveis. Entretanto, debates nas escolas relacionados a gênero ou questionando a heteronormatividade – oh, que horror! – seriam inaceitáveis.

De acordo com o atual presidente do Brasil, é totalmente justificável que forças de segurança, ou mesmo cidadãos bem-intencionados no uso legítimo da autodefesa, matem outros cidadãos, porém que dois jovens urinem consensualmente um no outro é uma degeneração moral inaceitável e deve ser exposta e ridicularizada, mesmo que para tanto o nosso maior espetáculo, o carnaval, seja atacado aos olhos do mundo que nos visita para brincá-lo.

Jason Stanley, em sua obra “Como funciona o fascismo”, afirma que “como a política fascista tem, em sua base, a família patriarcal tradicional, ela é acompanhada de maneira característica pelo pânico a desvios dela. Indivíduos transgêneros e homossexuais são usados para aumentar a ansiedade e o pânico relacionados a papéis masculinos tradicionais.” Esta hipócrita e seletiva defesa de valores morais nesta contraditória retórica bolsonarista – que condena e repudia a sexualidade, ao mesmo tempo em que enaltece ou glorifica atos de violência e barbárie – possui elementos desta ansiedade sexual descrita por Stanley e que é habilmente explorada por governantes com este viés fascistoide.

E isto tem uma dupla função, por um lado solidifica uma estrutura hierárquica familiar e social fundada na figura de um líder masculino forte e que possui as soluções, mesmo que simplórias e impraticáveis, para os eventuais problemas que nos assolam, e por outro fornecer uma clara distinção entre as pessoas boas e puras, moralmente íntegras, e todos os demais grupos – e aqui podemos enumerar alguns dos alvos recorrentes deste discurso: gays, lésbicas, feministas, comunistas, artistas, intelectuais, evolucionistas, etc. – que enfeixam todos os valores negativos que devem ser suprimidos neste modelo fundamentalista de sociedade cristã.

De acordo com as próprias palavras do Bolsonaro para seus seguidores, “vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias tem que se curvar às maiorias. (…) As minorias se adequam, ou simplesmente desaparecem”. Portanto, o elemento unificador das falas do Bolsonaro, da Damares e do Weintraub aponta para um futuro, próximo talvez, no qual, em favor dos mais nocivos preconceitos morais, seja sufocada a complexa e plural tessitura social brasileira.

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