Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Para quê falar em golpe, Lula? 

O descompasso entre a realidade de um governo analógico e um mundo digital resta evidente

Foto: Luis ROBAYO/AFP
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Foi em 16 de setembro de 2019, no programa Roda Viva da TV Cultura, que Michel Temer disse:“Eu jamais apoiei ou fiz empenho pelo golpe”. Na plateia, espantava-se o jornalista Ricardo Noblat, um dos maiores entusiastas da armação golpista e desgraçadamente antidemocrática que roubou o mandato concedido a Dilma Rousseff em 2014. “Eu não poderia ser articulador de um golpe porque chegaria muito mal ao governo”. 

Se já havíamos chegado ao ponto de Michel Temer, o maior beneficiário direto do impeachment, afirmar e repetir que a ex-presidente foi vítima de um golpe, por qual razão Lula resolveu retomar a questão com tanta eloquência e diante de um evento com ampla cobertura da imprensa? Ou seja, com chances infinitas de repercussão pública da fala – o que certamente atiçaria e alimentaria o ânimo da oposição a seu governo?

À época, Michel Temer sabia muito bem o que estava fazendo e falando. Não tratou-se de um ato falho, mas de cálculo político. Na mesma toada, não faltam estudiosos e especialistas da área de política que admitem desde sempre – ou que admitiram posteriormente com algumas ressalvas semânticas e conceituais, que o impeachment de Dilma Rousseff passou longe de ser algo moral e juridicamente defensável.

Foi uma armação tocada por interesses diversos e difusos, inclusive inter-institucionais, visando o confisco de um mandato popular e a anulação, ainda que parcial, da vontade da maioria.

Tratar o impeachment de Dilma Rousseff nos termos que o definem é, tão e somente, um ato de defesa da democracia. Sem sombras de dúvidas, 2016 abriu as portas para que nós fôssemos jogados na lama antidemocrática e fascista da extrema-direita bolsonarista. Não foi por falta de aviso.

Dito tudo isto, volto à pergunta: por qual razão Lula voltou a esta discussão, que só encontra controvérsia em ambientes pouco especializados e em ecossistemas midiáticos propícios à cacofonia e à inflamação? 

Para um governo que precisa, desesperadamente, retomar uma agenda propositiva face ao caos imposto pelo golpismo da extrema-direita e o avanço da tutela militar sobre a República, requentar a infrutífera e datada discussão sobre “se foi ou não foi golpe” é de um amadorismo que me assusta. 

Mais do que isso: é denotativo de um governo que, pelo visto, ainda não entendeu que Lula não governa o Brasil de 2003 e sim o Brasil de 2023, diante de uma nova composição de forças políticas, do debate público – e o mais importante: um novo regime de comunicação. Um novo ecossistema de produção, circulação e consumo de informação e de formação da opinião pública e de climas de opinião. 

Quando até o Geddel Vieira Lima – aquele que gerenciava um bunker com uma montanha de cédulas de real – sente-se moral e politicamente confortável para usar a fala de Lula para surfar na política online, é porque a coisa ficou, realmente, muito feia. O descompasso entre a realidade de um governo analógico e um mundo digital resta evidente. 

Sabemos que política é sobre percepções e elas se formam por meio das trocas linguísticas e simbólicas dos canais de comunicação de que dispomos. Compreender o espírito do tempo da comunicação de um era é crucial para o sucesso ou o fracasso de governos e governantes. Será que já disseram isso para Lula e seus ministros? Que as redes digitais possuem uma dinâmica que demanda uma outra engenharia? 

Voltarei ao tema em breve – e em momento mais oportuno. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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