Durante as manifestações ocorridas na cidade de São Paulo no dia 14 de junho de 2019, o noticiário destacou a prisão do Defensor Público Rafael Português. O presente texto visa a problematizar esse evento.
Um dado inicial não pode ser desprezado, qual seja, a luta política contra os projetos de reforma previdenciária e de sucateamento da educação pública promovidos pelo (des)governo Bolsonaro merece e sempre merecerá ser permeada pela incisiva censura pública. A movimentação governamental encontra-se nitidamente afinada com um vetusto problema histórico latino-americano que remonta à formação dos Estados Nacionais em que as elites hegemônicas não conseguem governar sem abrir mão de sua dominação.
Daí, se mostrar pertinente a crítica lançada por Aníbal Quijano, em Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina:
“(…) a pequena minoria branca no controle dos Estados independentes e das sociedades coloniais não podia ter tido nem sentido nenhum interesse social comum com os índios, negros e mestiços. Ao contrário, seus interesses sociais eram explicitamente antagônicos com relação aos servos índios e os escravos negros, dado que seus privilégios compunham-se precisamente do domínio/exploração dessas gentes.”
Diante desse cenário de real ameaça de direitos, mostra-se legítimo o questionamento popular, sendo certo que a tentativa de desqualificá-lo – “idiotas úteis” – nada mais é do que claro sinal da incompreensão do regime constitucionalmente estabelecido e que prima pelo pluralismo.
Ainda nesse horizonte de desconhecimento da experiência democrática, os últimos dias demonstram o simulacro de processo penal ocorrido na mais midiática operação de combate à corrupção, vez que verdadeiro conluio foi estabelecido entre os órgãos julgador e acusador. As mensagens divulgadas pelo The Intercept corroboram a velha máxima de “quem possui o juiz como acusador, só Deus como defensor”.
E é aqui que chegamos ao ponto que motiva a escrita deste texto: a prisão em flagrante de um Defensor Público sob o argumento de que teria desacatado policiais militares e ainda auxiliado na evasão de um preso. Contrapondo-se a esse discurso oficial, o agente público aprisionado afirma que simplesmente questionou a abordagem policial de uma pessoa em situação de rua.
Nesse momento, se mostra, portanto, apropriado invocar a história, pois, ao ser realizada comparação com a realidade republicana da Roma Antiga, depara-se com algumas proximidades entre o Defensor Público e o Tribuno da Plebe.
Dentre as magistraturas romanas – que não devem ser confundidas com o exercício da atividade jurisdicional moderna – o Tribuno da Plebe tinha por função “proteger o povo”, conforme depreendenmos do Dicionário Oxford de Literatura Clássica Grega e Latina, de Paul Harvey.
Em um país marcado por desigualdades e que o acesso à justiça se mostra um direito distante para considerável parcela da sociedade, não resta dúvida de que os Defensores Públicos podem prosseguir na jornada de auxílio do povo contra o arbítrio estatal.
Ora, se há então uma similitude entre o Defensor Público e o Tribuno da Plebe, no exercício das funções do agente público brasileiro deveria ser observada a inviolabilidade do magistrado romano, o que reverberava em aspecto religioso. Nesse sentido, André Aymard e Jeannine Ayboyer em Roma e seu Império, vol. III, p. 163:
“(…) é sacrilégio e maldito quem ousar erguer a mão contra ele [o tribuno da plebe] ou lhe resistir pela força”.
A arbitrariedade suportada por Rafael Português e que atingiu a todos Defensores Públicos brasileiros não implicará, até mesmo em razão da vigência do Estado Laico, em maldição a quem optou pelo uso dos grilhões e da prisão como forma de impedir a tentativa de auxílio ao povo, mas sinaliza o grau de deficiência da compreensão do que é democracia no cenário sociopolítico brasileiro.
Aliás, em 1984 quando ainda vigorava a ditadura civil-militar, Caetano Veloso apresentava relevante questionamento:
“Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da América Latina
Quem sempre precisará de ridículos tiranos?”
A despeito de o regime autoritário ter soçobrado, a truculência policial ocorrida no aprisionamento de Rafael Português denota que resquícios do período em que questionar o poder não era possível ainda se mostram vivos.
Não há mais espaço para esse tipo de atuação policial, e para que no regime democrático os podres poderes não sejam mais exercidos, o tribuno da plebe, o Defensor Público, merece ser respeitado. Força Português.
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