Diversidade

Pai de Santo pode desfilar?

É urgente ressignificar o imaginário social sobre as pessoas negras e aceitar a subjetividade em todas as suas camadas, inclusive no sacerdócio do candomblé

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Desde 2020, ano do assassinato de Geroge Floyd, quando foram estabelecidas cotas raciais maiores (sob punição) para os desfiles do São Paulo Fashion Week (SPFW), a diversidade nas passarelas obviamente aumentou. Com ou sem cotas, o Projeto Sankofa já se organizava para levar diversidade tanto no comando das marcas quanto nos modelos para as passarelas. Não há quem acompanhe moda e não se lembre do desfile protesto da Mile Lab ou dos atabaques louvando Exu pela Meninos Rei em novembro do ano passado.

Na edição de 2022 não vai ser diferente, mas dessa vez, teremos a sorte de ver além de mulheres e homens negros e indígenas e a estética periférica e do candomblé, um babalorixá desfilando. Rodney William, conhecido como pai Rodney de Oxóssi, vai modelar pela Santa Resistência ao lado de Diogo Nogueira e a atriz Cris Viana. A marca assinada pela estilista baiana Mônica Sampaio homenageará Cartola e a escola de samba Mangueira.

Mas a pergunta que ouço é: e pai de santo e mãe de santo podem desfilar?

Não é novidade que me iniciei no candomblé pelas mãos de pai Rodney há três anos. Pouco antes de entrar para o roncó (lugar em que passamos boa parte da iniciação dentro do terreiro) ouvi de alguém o “conselho”: “talvez ele não seja a melhor pessoa para fazer seu santo, é midiático demais”. O tempo me ajudou a não levar o comentário em consideração. Minha vida – é público e notório – só fez melhorar, resgatei minha saúde mental e física e fortaleci minha história de longa data com o terreiro.

Encontrei um sacerdote e amigo, que sim, “habla mesmo” e gosta do bom, do melhor e entende que o conhecimento e a comunicação são chaves fundamentais para rompermos o ciclo de violências sistêmicas que enfrentamos enquanto seguidores de uma religião de matriz africana. Não o endeuso ou o adoro. Sei que ele é um braço humano que nos conecta com os saberes da religião, tem seus vícios e virtudes. Mas aquela provocação inicial me fez acompanhar com maior sensibilidade o que seria esse tal Rodney “midiático demais” e como as pessoas lidam com a existência de pessoas de axé em toda a sua subjetividade.

Ser pai Rodney não é tarefa fácil, imagino. Tudo incomoda. Se ele está em Paris, perguntam sobre a colonização, se pega um avião na primeira classe o acusam de burguês, a roupa boa, a comida boa, os brindes e os bons encontros, até os lustres que enfeitam a casa de Oxóssi incomodam. “O pai de santo das estrelas já foi mais humilde”. Não conhecem a realidade dos muitos filhos e filhas do terreiro, mas fazem questão de dizer que ele só zela para os ricos. Conhecem o dia a dia de sua pública e extensa produção intelectual e trabalhos profissionais e acadêmicos em paralelo ao sacerdócio, mas fazem questão de apagá-la. E, lógico, não falam do lado político do filho de Oxóssi que, mesmo sendo ensimesmado, caminha com lentidão para dar tempo de abraçar todo mundo.

Foto: Luciano Garcia

Acho interessante resgatar minhas memórias e ver que, no Rio de Janeiro de onde eu venho, há uns 25 anos, às yalorixás e babalorixás brancos eram dispensados tratamentos e questionamentos diferentes. Minha mãe era mulher negra, foi iniciada no Jeje Mahin. Ali, era permitido que seu sacerdote Luiz de Jagun pudesse ser “rico”, espaçoso, adulado, dar entrevistas, escrever, ser eternizado como um grande comunicador que era, dono de um terreiro suntuoso… Midiático. Eu pequena ficava deslumbrada com o tamanho daquele homem em todos os sentidos. E a questão não é sobre ele, é sobre quem o olhava e o aceitava como ele era.

Um pai de santo branco pode tudo e não é questionado por assumir sua missão de comunicador. Enquanto as mães de santo e pais de santo negras e negros são cobrados cotidianamente por não ter e não ser.

Fico me imaginando em outros tempos… O que o Joãozinho da Goméia, outro filho de Oxóssi, homossexual, bonito, vaidoso e “midiático” passou para ser o “o Rei do Candomblé”, com todo mérito e direito. É da natureza do orixá ter filhos à sua imagem e semelhança. E cabe a seus filhos entender a essência de orixá dentro de si. Rodney e Joãozinho assim o fazem.

Algumas notas

Três reflexões principais podem nos ajudar a quebrar os tabus a respeito desses preconceitos que só se apoiam em corpos de mulheres e homens negros. Primeiro, as pessoas não fazem ideia do que é uma religião de matriz africana, até mesmo porque elas não se dão ao trabalho de entender a raiz da cultura que trouxemos para cá quando fomos sequestrados em África. Talvez, por isso, a realeza branca dentro da religião seja mais palatável que a realeza negra inerente ao nosso povo. 

Temos também e principalmente o racismo que – tal qual um sistema de castas – tem como principal função fazer com que pessoas não-brancas continuem à margem, para que elas nunca alcancem uma mobilidade social. Para isso é importante impregnar de certos dogmas a cultura praticada pelo outro – e o outro sempre é um corpo dissidente.  

A ideia de pecado, por exemplo, não é nossa, mas socialmente ela baliza o ponto de vista sobre quem pratica uma religião afro. Orixá não é santo. Então, por que nós seríamos? Uma mãe de santo ou um pai de santo inicialmente terá questionada a sua vida pessoal e profissional fora do terreiro em função do terreiro: “Com o que ele trabalha?”. 

Ao mesmo tempo, essas pessoas, dentro de seus terreiros serão cobradas a trabalhar na base da caridade e da filantropia – porque o ranço da escravização, do que querer que se faça sem precisar cobrar nem mesmo a gratidão ainda está lá. “Ai, o jogo dele é muito caro.”. Isso numa sociedade que não olha para a nossa comunidade com um olhar filantrópico. Tais cobranças colocam essas pessoas num lugar em que – trabalhando e/ou exercendo o sacerdócio – nem subsistir é possível. Quem quebra esse ciclo, é veemente questionado e subjugado.

Nós também temos uma ideia muito associada à representação da maternagem. Nos acostumamos a ver quem o papel de gestar, gerir e criar um filho para essa sociedade não se assume em coletividade. É uma função de indivíduo – normalmente a mãe –  que se torna única e exclusivamente responsável por cuidar de outro/outros e durante esse processo tem a sua identidade usurpada. Para o candomblé – aqui entendendo o roncó como “útero” simbólico – yalorixás e babalorixás assumem esse papel desprovido de subjetividade. E a apropriação da subjetividade, para além da maternidade, sabemos que sempre recai sobre grupos minorizados em geral, principalmente sobre pessoas negras.

Ser de uma religião de matriz africana, ser LIVRE, viver bem, usufruindo do bom e do melhor – aproveitando a vida em todas as suas possibilidades, ser da religião para além do terreiro, inclusive usando a mídia e a comunicação como ferramenta e arma – não é contra axé, muito pelo contrário. Como dizia mãe Stella, “A vida é boa e gozá-la convém”. Aliás, o que seria de nós sem mãe Stella, outra filha de Oxóssi “midiática”, que apesar de introspectiva, usou como ninguém a oralidade e a escrita para nos Ori-entar ao longo de todos esses anos, mesmo depois fazer sua passagem para o Orun? Foi com ela que também assimilamos que dentro do terreiro e fora dele é necessário aprender, mas sobretudo ressignificar alguns significados de acordo com o nosso tempo, como ela registra  em seu livro “Meu tempo é agora“. 

E é com NOSSO pai Rodney – porque já entendi que esse papel de Rodney William Eugênio enquanto pai é coletivo – que aprendo todos os dias encontrar o que vai me fazer feliz. A ele, certamente, acredito que seja desfilar com uma linda roupa, curtir o carnaval, posar sem sunga numa praia deserta e tantas outras estripulias humanas e mundanas mas também o sacerdócio. Tal qual Exu que é um orixá, mas não deixa de ser o mais humano deles, ele é um pai e é humano.

Nada disso significa que ao cruzarmos os portões de nossa “roça” não estejamos imbuídos dos maiores e mais profundos sentimentos de humildade. Com a presença de um babalorixá que apesar de carinhoso é extremamente correto e perfeccionista, na nossa casa – o Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá – confesso que paira no ar uma certa tensão. Orixá nos ensina que não somos perfeitos, mas sob o olhar de nosso babá nos é cobrado que aos pés de orixá tudo seja feito à perfeição ou o mais próximo que possamos chegar dela.

A fome de aprendizado no nosso terreiro é muito simbólica. Ela fez com que um homem negro, periférico, atravessasse a cidade e alcancasse uma a mobilidade social e abrisse espaços, apesar de todas as violências possíveis – inclusive física como um tiro. É vindo de lá que ele escreve sobre seu pai de santo e o eterniza na escrita, explica o que é apropriação cultural, reforça a importância da senioridade no candomblé e na cultura afro, desmitifica muitos preconceitos sobre Exu – inclusive populariza Exu – ocupa todos os espaços que crê serem necessários por uma questão social, política ou simplesmente pessoal.

Um babalorixá de Oxóssi

Observo que Oxóssi caça, mas também caminha – sem abdicar de sua coroa e seu trono – na direção de uma vassoura para limpar o quintal. Meu pai de santo modelo persegue o afinco ao enfeitar uma boneca ou um barco a ser oferecido a uma iyabá, depena o frango, enrola mil bolinhas de arroz e farinha, frita um acarajé deliciosamente temperado com todo amor ao orixá… Repete à exaustão as rezas em cada função, explica seus significados. Sua função primordial é nos ensinar a aprender, enquanto também segue aprendendo com humildade, sem deixar de fazer.

Para ele, a riqueza intelectual é indubitavelmente a mais valorizada. E a intelectualidade também está na poeira do quintal. Por outro lado, a riqueza é algo para além da definição material, mas essa riqueza material também nos pertence e é ofertada. Ao lado desse sacerdote midiático e que desfilará no SPFW, a alegria, o bem viver e a realeza que nos foram usurpados há quase 500 anos são veementemente reivindicados, partilhados e reaprendidos. Ali, não convivem só os ricos, mas na maioria das vezes aquele que tem 1 conquista caminho para muitos outros 100.

Seja com cotas ou sem elas, estamos no caminho cada vez maior de uma ressignificação do olhar acerca dos corpos negros, indígenas, de corpos não cisnormativos. Que esse tempo de ressignificação inclua também uma reformulação do olhar para o racismo religioso. Mãe de santo e pai de santo podem fazer o que quiserem, ser o que quiserem em toda a sua subjetividade. 

 

Em entrevista recente de Rodney William de Oxóssi ele diz “se eu não fosse babalorixá eu seria infeliz”. Eu acho que o babalorixá é essencial em mim para definir todas as outras coisas que eu posso ser. Eu fiz questão de ser um babalorixá e defender um doutorado, numa sexta-feira, para que todos estivessem de branco. Seria uma maneira de fazer daquele momento também um acontecimento simbólico e político. Transformamos a Academia num espaço invadido, ocupado por pessoas negras, pessoas que defenderiam mais do que uma tese, defenderiam um povo”.

Desfilar no SPFW, desfilar no Anhembi ou na Sapucaí não faz de Pai Rodney menos ou mais pai, faz desse pisar, um pisar simbólico e político. Faz de pai Rodney um homem negro, babalorixá cruzando mais uma barreira, ocupando mais um espaço com a nobreza e humildade que o fazem grandioso. Esse “pai” indissociável de seu nome é intrínseco à sua existência. Mas entendermos que estar nesses lugares não é antagônico, gozar da vida como o convém, certamente é entendê-lo como pai que é antes de tudo um ser humano e que tal qual Exu pode e deve ser um pai cada vez mais feliz, imerso num ethos africano, transcendendo sua missão no Aiyé. Livre. 

Faço votos de que ele desfile feliz com o sorriso no rosto que lhe é costumaz. Uma pessoa que é feliz sendo o que se é e que transborda amor e felicidade, sempre poderá colocar a mão na minha cabeça, porque felicidade não exclui retidão, amor não exclui retidão. E felicidade e amor são o mais profundo axé.

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