Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Os porcos da minha vida

David Bennett recebeu um coração de porco geneticamente modificado; o progresso da ciência nos anima, como as eleições de outubro nos enchem de esperança

O transplante foi realizado em 7 de janeiro. Foto: Universidade de Maryland/Divulgação via AFP
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Em meio a tantas notícias ruins, aumento da gasolina, temporais destruindo Minas Gerais, a variante Ômicron se espalhando pelos quatro cantos do mundo, uma discussão absurda sobre vacinas para as crianças, o Cazaquistão fuzilando manifestantes, o presidente da República abrindo a boca, nos chega uma notícia extraordinária, a de David Bennett, de 57 anos, que recebeu um coração de porco geneticamente modificado.

Os telejornais da noite deixaram para dar a notícia como última matéria para que os telespectadores pudessem respirar um pouco aliviados, depois de tantos bombardeios. Respiramos sim aliviados, um pouco pelo menos. O progresso da ciência nos anima, como as eleições de outubro nos enchem de esperança.

Minha relação com porcos começou quando pulei do berço para uma cama patente de solteiro e minha mãe passou a ler historinhas infantis para que os filhos pegassem no sono. E a história dos três porquinhos era a que eu mais gostava. Gostava do enredo em si e das ilustrações coloridas, aquele lobo medonho com umas orelhas enormes e uma língua vermelha, ávida por engolir os três porquinhos, um preguiçoso, um mais ou menos preguiçoso e um trabalhador.

Aquele sopro que derrubou duas das três casas me assustava, tamanha força ele tinha. E a carinha de medo dos porquinhos encolhidos no canto, em fuga para a casa mais segura, me deixava mais ansioso ainda, atrasando o sono.

Outros porcos passaram pela minha vida. A canção Piggies, de George Harrison, no álbum branco dos Beatles, me fez correr ao Dicionário Inglês-Português que tínhamos em casa.

Você já viu os porquinhos

Rastejando na lama?

E para todos os porquinhos

A vida vai ficando pior

Sempre tendo sujeira para

Se esbaldarem

O poema Porquinho-da-índia, de Manuel Bandeira, foi um sucesso quando o recitei numa festa da classe no Colégio Marista, há muitos anos. Mas era porquinho-da-índia, não era porco porco. Não valia.

Houve também na minha vida a matança do porco, na Fazenda do Sertão. Uma outra história. Aquela faquinha afiada indo direto no coração do porco nunca saiu da minha memória. Depois o filé, o torresmo, o pé, o rabo, a orelha, a feijoada. Nos dias de hoje, sinto um certo arrependimento pela crueldade.

Uma vez passou por mim também a canção O Porco, de Beto Jamaica, no disco A Arca dos Bichos:

Tô muito preocupado, tô pensando na vida
Até no meu chiqueiro tá faltando comida
Eu vou me irritando de barriga vazia
Quero comer abóbora, laranja e melancia

Passou rapidinho, tinha até me esquecido.

Outros porcos passaram por minha vida. Quem, com mais de setenta anos, não se lembra dos porquinhos da Casas da Banha, dançando nos comerciais da televisão?

Pois é, teve ainda a Peppa Pig, a porquinha cor de rosa que vive com o seu irmãozinho George e seus pais, numa casa lá na Inglaterra. Ela já está fazendo 20 anos, quem diria?

Mas escuta, por que esse trelelê todo sobre porcos? Volto ao primeiro parágrafo desta crônica. Foi um porco que deu um coração novo ao David Bennett, neste início de 2022. Um porco anônimo, coitado, que não teve sequer os seus 15 minutos de fama.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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