Política

Para conquistar o voto dos evangélicos, a esquerda terá que recuar de pautas progressistas?

Para o cientista político Victor Araújo, autor do livro ‘A religião distrai os pobres?’, a resposta é sim. ‘É preciso saber jogar dentro dessa nova clivagem moral religiosa’

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Diante da confirmação da vitória presidencial nas urnas, um importante líder pentecostal vaticinou: “Não podemos negar, quem o elegeu foram os evangélicos”.

Engana-se, porém, quem pensa que a frase diga respeito à eleição de 2018, que deu vitória a Jair Bolsonaro (PL). O registro é de 1989, ano da eleição de Fernando Collor. E não veio da boca de Silas Malafaia ou de Edir Macedo, e sim do pastor José Wellington, líder da Assembleia de Deus.

Sob a promessa que fez à comunidade evangélica (“juntos, e com muita fé em Deus, iremos reconstruir o Brasil”), Collor foi o primeiro eleito via eleições diretas após 21 anos de ditadura.

De acordo com a pesquisa Datafolha, divulgada em 2020, os evangélicos já correspondem a 31% da população, o que se traduz em 65 milhões de eleitores e, se mantida a projeção, até 2030 o grupo religioso se tornará maioria no Brasil, desbacando o catolicismo.

O pentecostalismo está enraizado em áreas de pobreza e a religião ensinou essa pessoa a se importar menos com a economia em razão ao moralismo

“Quem nasceu em 1960 cresceu em um país cujo 90% da população era católica e, se viver em média 75 anos, morrerá em um Brasil de maioria evangélica”, afirma o cientista político Victor Araújo. “Nós estamos migrando de um país católico para o evangélico, e essa é uma transição assustadoramente rápida. Em 1970, eleitores evangélicos representavam 5% do total, era um fenômeno residual, nos anos 2000, esse público era de 15,6%”, afirma.

Para discutir as raízes do voto religioso no Brasil, Araújo lança o livro A religião Distrai os Pobres?, que analisa a mentalidade e os comportamentos de três eleitorados. O católico, o protestante tradicional e o evangélico pentecostal, enquanto mostra como o último grupo contribuiu para a difusão do conservadorismo no país.

Para compreender o impacto do voto desta parcela crescente de eleitores, defende, é preciso conhecer o seu perfil: são pessoas que vivem com em média até dois salários-mínimos, habitam áreas periféricas. E, diferentemente dos frequentadores de igrejas católicas, protestantes e batistas, tendem a passar mais tempo no ambiente religioso.

“A igreja pentecostal chegou aonde o Estado não alcança. São áreas de extrema vulnerabilidade em que esse projeto religioso atua no amparo à comunidade. É construída uma relação de confiança com o fiel, que possibilita a mobilização através da ‘pregação”, explica.

Neste ponto, Araújo atenta-se para o teor do discurso de ‘vitória’ difundido na vertente pentecostal. A doutrina estimula o comportamento individual baseado em uma ‘graça de Deus’, revelada apenas àqueles que atingirem certo nível de santidade em detrimento dos demais, ou seja, o moralismo pavimenta o caminho da vitória, traduzida no sucesso econômico em uma sociedade capitalista.

Confira a seguir.

CartaCapital: Como a religião tem se tornado uma identidade eleitoral no Brasil?

Victor Araújo: Eu adoro essa pergunta. Para muitas pessoas, ainda não é evidente que estamos passando por um processo de transformação no nosso sistema político. Estamos saindo de um modelo em que essa identidade política, de maioria católica, não era tão política em seus valores para uma grande potência evangélica.

O tamanho do eleitorado que valoriza aspectos morais e religiosos em detrimento dos econômicos está crescendo, sobretudo porque essa nova porção religiosa é mais moralista e conservadora nos costumes. O eleitor evangélico pentecostal no Brasil é o que mais cresceu e será praticamente a única porção que continuará crescendo no futuro. Se existe essa clivagem religiosa, a conclusão inevitável é que essa identidade política passará a ser o centro do debate. É muito semelhante ao que ocorre nos Estados Unidos há quase três décadas: todo debate sobre políticas públicas, desigualdade e eleições se dão em torno do que eles chamam de ‘moral conviction’. É o apelo às convicções morais da população que norteiam o debate e consequentemente angariam o voto, não mais a economia. Todos os temas do debate político precisam de alguma forma conversar com as convicções do eleitor.

CC: Esse é um fenômeno relativamente novo?

VA: Nós temos a visão turva de olhar o crescimento da população evangélica e desconsiderar que o eleitor, em sua grande maioria, sempre teve uma religião. O que nós temos não é a religião sendo trazida para a política, mas o conservadorismo invadindo um espaço que era modelado pela doutrinação católica.

Nas eleições podemos sentir a partir de 2010 a potência desse “novo” eleitorado. Temos a impressão de que eles cada vez mais estão forçando um segundo turno para a direita nas eleições, mas se você olhar para trás a ala católica em sua grande maioria não apoiou a candidatura do Lula, eles estavam lá com o Serra e o Ciro Gomes. A maior diferença é que o voto católico, como um voto religioso, era dispersado. Não havia a concentração em um nome como há hoje no voto evangélico. Por mais que o voto do eleitor seja orientado por uma convicção moral, ele não recebe um direcionamento claro dentro da Igreja, fica aberto a uma interpretação mais pessoal do julgo de valor.

CC: Como transição religiosa vai afetar futuras disputas eleitorais?

VA: Não consigo pensar em outro País que tenha vivido uma transição religiosa tão rápida quanto o Brasil. No intervalo de 70 anos, teremos migrado de uma população essencialmente católica para um País de maioria evangélica, em especial pentecostal.

Em 1970, 5% da população brasileira se identificava como evangélico. Nas eleições, isso era um fenômeno residual, agora em 2020 eles formam cerca de 35%. Seguindo as estimativas, em 2030 eles serão maioria. Percebe como esse espaço de tempo é curto?

Para exemplificar melhor: quem nasceu em 1960, o caso do meu pai, cresceu em um País cujo 90% da população era católica. Você não encontrava evangélicos na rua. Se seguir a expectativa de 70 anos de vida, meu pai viverá seus últimos momentos em um País de maioria evangélica. Então sim, a transformação é grande, principalmente porque essa nova maioria trará consigo questões morais muito distintas e é óbvio, se essa é a nossa nova maioria votante, terá repercussões no ambiente político.

É de se esperar mudanças importantes na forma como o eleitorado se orienta ao voto e, naturalmente, como a classe política responderá a essa demanda. A esquerda precisa recordar: o objetivo principal do político é ganhar votos. É preciso saber jogar dentro dessa nova clivagem moral religiosa.

CC: Como a esquerda conseguirá conquistar um eleitorado tão alheio às pautas progressistas?

VA: Para responder, precisamos definir a ideia central do ‘ser de esquerda’. Estamos falando de partidos que têm um programa voltado a redistribuição de renda e fomentam discussões como a liberação das drogas, relações homoafetivas e aborto em termos políticos em vez de questões morais.

O crescente eleitorado rejeita essa agenda, será necessário fazer concessões para continuar a disputar espaço no jogo político. A exemplo, a democracia europeia ao longo dos últimos 30 anos também teve que ‘andar para trás’, que no caso seria um pouco ao centro, para evitar perder uma parte importante do eleitorado.

É muito provável que isso aconteça no Brasil. O Partido dos Trabalhadores, que costuma ser a esquerda mais competitiva, teve que fazer uma aproximação com o centro, seja nas alianças políticas ou na mudança de discurso.

CC: Existe um discurso que associa o evangélico ao conservadorismo, sem enxergar nuances dentro da religião. Existem diferentes perfis dentro desse estereótipo ‘conservador’?

VA: É salutar fazer essa diferenciação e um dos objetivos do meu livro é justamente esse ponto. Existem diferentes tipos de votos evangélicos e é possível identificar ao menos dois grandes grupos: o tradicional protestante e os pentecostais.

O primeiro grupo bebe mais na fonte das igrejas reformadas europeias, enquanto o pentecostalismo é a vertente que mais cresce no Brasil, por estar associada ao evangelismo americano. Dos fiéis que a religião cativa no Brasil, podemos dizer que 60% são evangélicos pentecostais. Se você comparar o tradicional e o pentecostal, o segundo tem uma pauta moral muito mais forte no discurso político. Eles são o grupo mais ‘alérgico’ às candidaturas de esquerda.

Esse grupo é o que está alocado em maioria nas áreas de vulnerabilidade social e sobrevive com um salário-mínimo. Em tese, eles deveriam ser interessados em pautas progressistas, mas a doutrinação pentecostal estimula o comportamento individual baseado em uma ‘graça de Deus’, revelada apenas àqueles que atingirem certo nível de santidade em detrimento dos demais, ou seja, é o moralismo pavimenta o caminho da vitória. Então, nas áreas que os governos de esquerda mais atuaram com políticas públicas, são às que menos deram retorno nas urnas porque uma Igreja pentecostal também chegou naquele logradouro, às vezes antes das próprias políticas ditas assistencialistas.

CC: No livro, você defende que a economia ainda tem um peso importante no voto evangélico. O atual governo amarga os piores indicadores econômicos dos últimos 20 anos, como explicar a resistência do apoio evangélico à Bolsonaro?

VA: Se você analisar o apoio ao Bolsonaro, verá que ele tem cerca de 30% na espontânea. Se você dissecar esse grupo, verá que ele é composto por evangélicos pentecostais, militares e super ricos. Bolsonaro foi capaz de unir três grupos que são muito heterogêneos, é uma proeza incrível do ponto das ciências políticas.

Mas vamos voltar às eleições de 2018. Cerca de 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro no segundo turno das eleições, esse foi um caso sem precedentes se comparado às disputas anteriores. Sempre houve um cenário dividido, que provavelmente voltará a ocorrer em 2022.

Esse cenário basicamente é composto por pentecostais votando contra o PT, o que considero no livro como uma porção antipetista na religião. A outra parte dos evangélicos tem um voto muito mais disperso, pois é uma parcela mais bem escolarizada e que tende a confiar menos nas lideranças das suas igrejas. Essa parcela dificilmente é mobilizada no mesmo voto. É preciso entender que essa parcela evangélica tradicional não é antipetista, às vezes ela vota no Lula.

Aproveitando para falar sobre o antipetismo é preciso entender que nem todo mundo que não vota no PT é antipetista. O eleitor tende a focar em duas questões: posicionamento perante a corrupção e a pauta redistributiva, seja a favor ou contra.

O eleitorado brasileiro criou resistência ao PT desde o mensalão, enquanto outra parcela ficou irritada porque viu o filho da empregada frequentar a mesma faculdade. Essas duas questões foram as que mais enraiveceram a classe média, que é justamente esse fiel evangélico tradicional. Mas cabe ressaltar, essa parcela que corresponde a mais ou menos 35% dos evangélicos ainda está aberta ao diálogo, é um grupo que pode ser mobilizado novamente em 2022.

CC: O título do livro traz uma provocação forte e eu gostaria de repeti-la a você. A religião distrai os pobres?

VA: O tom do título é polêmico, deve trazer a impressão de que o livro será desrespeitoso com o eleitor religioso e ‘chamar pobre de burro’. Mas pelo contrário, nele eu tento explicar por que uma porção majoritária do eleitoral brasileiro, que é de baixa renda, não vota nos partidos de esquerda mesmo sendo os mais beneficiados por políticas redistributivas.

Vivemos um paradoxo. O que está acontecendo com esse eleitorado? Ele é irracional? Não é capaz de ordenar as preferências? E eu te respondo: não, ele não é irracional. O pentecostalismo está enraizado em áreas de pobreza e a religião ensinou essa pessoa a se importar menos com a economia em razão ao moralismo. É isso que ‘distrai o pobre’, ele vota contra si mesmo, mas pela hipervalorização de um conservadorismo moral, que segundo a doutrina, pavimenta a sua vitória.

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