Alberto Villas

[email protected]

Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Os diários

Há dias estou mergulhado nos diários de Eunice Penna Kehl, a avó de Maria Rita, escritos entre 1935 e 1936

Escritos de Franz Kafka. Foto: MENAHEM KAHANA/AFP
Apoie Siga-nos no

Outro dia fiquei pensando se todas as pessoas do planeta Terra escrevessem um diário. A menina do caixa do supermercado, o filósofo, o bancário, o professor da USP, o médico, o meteorologista, o motorista de caminhão, todo mundo.

Eu sou um fanático por diários. Já li dezenas e dezenas. Os diários de Kafka, os diários de Emilio Renzi, o diário de Anne Frank, o diário confessional de Oswald de Andrade, os diários de Che Guevara, até perdi a conta. Só não me interessei por aqueles diários falsos de Hitler e o diário de um Banana.

Uns dizem que escrever diário é fazer uma espécie de personal terapia. Outros dizem que diários não valem nada. Alguns perguntam: a quem interessa o diário de um anônimo?

Há dias estou mergulhado na leitura de uma primeira leva dos diários de Eunice Penna Kehl, a avó de Maria Rita, escritos entre 1935 e 1936.

Uma época em que as pessoas iam na cidade, isto é, no centro da cidade, comprar fazenda para fazer um vestido. Época em que as pessoas diziam estar enfaradas de comer arroz com feijão. Falava-se pinoia, chamava-se bonde de bond e coisa de cousa.

Eunice era mais que uma dona de casa que resolveu registrar o seu dia a dia, muitas vezes simplório. Ela tinha sonhos, tristezas, alegrias, afazeres, tudo dentro de um dia.

Eunice perdeu o seu filho Victor Luiz ainda menino e carregou essa cruz dia após dias, toda a vida. As idas ao cemitério, os sonhos, a saudade, a angústia, o vazio, o acompanhamento da feitura do busto do menino, tudo era registrado em cadernos e mais cadernos e depois passados a limpo.

Vou engolindo os dias, as semanas, os meses de Eunice, como se fossem meus. Os furúnculos, as dores, as injeções, a arrumação da casa, as idas ao cinema para assistir a uma fita excepcional.

Era uma época sem senha, sem zap, sem waze, sem spotify, sem e-book, sem tiktok.

Desde o dia primeiro de janeiro de 1975 eu nunca deixei de escrever alguma coisa sobre o meu dia. Diria hoje que são segredos de liquidificador, se é que isso faz sentido.

Outro dia, espanando os armários do meu escritório, deparei com uma frase escrita no dia 17 de junho de 1977, no exílio em Paris.

Hoje uma cigana da Iugoslávia passou aqui no restaurante onde descasco batatas e cebolas e todo mundo ficou ouriçado. Eu perguntei a ela quantos filhos eu teria. Ela pegou a minha mão, recém-casado pela primeira vez, e disse: quatro! Eu não tinha nenhum, hoje tenho o Julião, a Sara, a Maria Clara e a Marilia.

Ah… esses diários!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo