Opinião

Os consumidores brasileiros estão sob risco constante

O advento da inteligência artificial em sociedades tão desiguais, como a brasileira, tende a aumentar a dominação dos mais desonestos sobre os mais honestos

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
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“Que medo da morte nada, filhinha. Coloca aí no seu jornalzinho: o que eu estou é com saudade da vida!”

Vinicius de Moraes

O advento da inteligência artificial, em sociedades tão desiguais, como a brasileira, tende a aumentar a dominação dos mais desonestos sobre os mais honestos.

Com efeito, qualquer pessoa que seja cliente de uma empresa de energia privatizada perceberá isso facilmente – e sentirá na pele as consequências dessa desigualdade de poder.

Para exemplificar, relato o que me aconteceu hoje mesmo. Recebi conta da Companhia Piratininga de Força e Luz (CPFL) no valor astronômico de mais de 8.600 reais, sendo que a média de meu consumo mensal não ultrapassa 140 reais.

Ora, a dita inteligência artificial não deveria ter detectado que houvera algo anormal?

Não o fez, por razões óbvias…

Entretanto, se eu tivesse deixado de pagar uma mísera conta de 20 reais, certamente o “sistema” teria notado e eu sequer poderia estar escrevendo agora, porque minha luz já teria sido cortada.

Depois de digitar uma quantidade infinita de números no 0800 da companhia, fiquei aguardando por quase meia hora uma resposta, em vão.

Fui à loja, onde havia uma fila de sete pessoas, idosas como eu, todas obrigadas a esperarem de pé.

Ao ser atendido pela única atendente presente, fui informado de que deveria fotografar o relógio da luz, imprimir e trazer à loja.

Ou seja, o ônus da prova cabe inteiramente a um lado, o do cliente, até nisso lesado.

Vale notar que essa solicitação poderia ter sido feita pelo 0800, mas não foi, provavelmente porque a empresa não gasta sequer com a formação de funcionários, terceirizados e, provavelmente, mal pagos.

Retornei com a cópia solicitada, tendo de fazer fila novamente.

Para que a humilhação fosse mais completa, fomos instados, os “preferenciais”, a darmos um passo atrás e fazermos fila indiana, como se tivéssemos retornado à pré-escola.

Ao ser atendido pela segunda vez, recebi uma senha, para nova espera, então sentado e com ar-condicionado, ao menos.

Mas as surpresas não haviam terminado: ao ser chamado para o guichê, não me deparei com um ser humano, mas com um telefone, e uma câmera, com os quais passei a dialogar, tendo um funcionário (aparentemente também terceirizado, pois sem uniforme e com escasso conhecimento, embora com muita boa vontade) na outra ponta da linha, que não sei sequer onde se situava.

Primeiramente, o referido funcionário me disse que a conta era falsa. Depois, percebeu que se enganara.

Chamou dois colegas e, ao cabo de uns 15 minutos, concluiu pelo óbvio: fora erro da empresa.

Compreensivelmente apreensivo, solicitei algo por escrito, recebendo um singelo número de protocolo.

Foi toda uma manhã perdida, com idas e vindas sob sol escaldante.

Além da constatação óbvia de que as privatizações só pioram os serviços, fica a indagação: o que faz a Agência Nacional de Energia Elétrica? Para que serve? A quem serve?

Pior, a conta estava em débito automático e só não foi paga porque, obviamente, eu não tinha aquele saldo na conta corrente.

Mas os consumidores brasileiros estão sob risco constante, mesmo nas férias.

Novamente, reporto-me a experiência pessoal: pela segunda vez, em menos de um ano, hospedo-me em hotel, em Santa Catarina, em reforma, sem que isso fosse avisado no ato da reserva ou que algum tipo de desconto na diária fosse, justamente, concedido.

Pelo menos, da segunda vez não trabalharam à noite…

Por outro lado, malgrado as desonestidades, ainda se encontra muita gente honesta neste país, pois a locupletação vem dos donos do capital, cujo único objetivo é o lucro, mesmo que para isso considerações éticas ou morais tenham de ser suprimidas.

Pela terceira vez, farei referência ao que vivi, recentemente.

Em viagem ao Rio Grande do Sul, tive pane elétrica automotiva, em plena estrada.

Depois de tentar três oficinas mecânicas, que se recusaram a tentar o conserto, por estarem com excesso de veículos, fui atendido por uma mecânica cujo dono disse aos funcionários: ele está em viagem e por isso vamos dar prioridade ao conserto do carro.

Na verdade, esse deveria ser o protocolo das oficinas, se quiséssemos que o turismo fosse prioridade econômica, o que não é em um país ainda agroexportador, com dificuldade em ingressar no século XIX, industrial. Um atraso de meros 200 anos…

Em duas horas, eu saí de lá com o carro em perfeitas condições de chegar até Jundiaí.

Se um dia você tiver um defeito elétrico na BR 101, não hesite em parar em Três Cachoeiras, RS, Terra do Caminhoneiro, na “SHIPCAR”. Serei eternamente grato a eles pelo serviço e pela atenção solidária que me prestaram.

Levanto todas essas mazelas ciente de que nossas virtudes superam nossos defeitos, como nação.

Por isso, cito Clarice Lispector, que por sua vez foi citada por Luiz Antonio Simas, no Almanaque Brasilidades: “Até cortar os defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.”

Finalizo esta reflexão com outra citação do mesmo Almanaque, de Simas, que cita Mano Brown, dos Racionais MC’s: “Tem uns baratos que não dá para perceber, que tem mó valor e você não vê. Uma pá de árvore na praça, as crianças na rua, o vento fresco na cara, a estrela, a lua.”

Ser acolhido tem essa luz tênue, delicada, de vida, de respeito, de ser quem se é apenas por ser, sem precisar de nenhum outro predicado a mais.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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