Opinião

assine e leia

Onde estava o jornalismo?

Sem a cumplicidade da mídia, o embuste da Lava Jato não teria sobrevivido por tanto tempo

Onde estava o jornalismo?
Onde estava o jornalismo?
Moro também tinha um gado para chamar de seu - Imagem: Marcos Oliveira/Ag.Senado
Apoie Siga-nos no

Os jornalistas brasileiros me desculpem, mas há um debate a fazer. Depois da decisão do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas relativa ao processo judicial do ex-presidente Lula não podemos passar por cima do que aconteceu sem trocar umas palavras sobre o assunto. A verdade é que, sem a cumplicidade do jornalismo, retiradas as nobres exceções a que farei referência, o processo não teria existido da forma como existiu e, sobretudo, o embuste não teria sobrevivido tanto tempo.

Deixemos de lado as evidentes motivações políticas e as pulsões de ­vendetta que as lamentáveis personagens carregam consigo. Ponhamos de lado os nomes dos juízes e procuradores que deram corpo a esta obscena farsa judicial. Tudo isso existiu, é certo, e sem isso qualquer explicação para o que aconteceu será insuficiente. Mas só isso será igualmente redutor. O que desejo pôr em evidência é que todo o plano de ação se deu à volta de um crime, o crime de vazamento ilegal de informações. E isso tem a ver com o jornalismo. Como todos puderam ver ao longo do processo da Lava Jato, o vazamento de informações foi resultado de um negócio, de um comércio, de uma troca de favores entre o jornalista e a autoridade judicial: dá-me informação, ganhas elogios, dá-me audiências, ganhas uma biografia. Eis, em síntese, a entediante história da construção do mito do juiz-herói.

O vazamento constituiu, portanto, o instrumento central desta nova “violência simbólica” em que a televisão e os jornais se transformaram nas armas favoritas da coação e brutalidade da justiça estatal. As acusações ao visado pareciam surgir de todos os lados, todas as semanas, sobre todos os assuntos, de forma a tornar impossível qualquer tipo de defesa – “estou a defender-me de quê, exatamente”? A situação pode ser comparada àquela do jogador de tênis que vê várias bolas serem disparadas para o seu campo sem conseguir decidir-se sobre qual delas deve reagir. Com o tempo perceberá que tem de se defender de todas, que as deve desconstruir uma a uma. O que acontece neste jogo perverso é que o Estado se livra do ônus de provar seja o que for e o princípio da presunção de inocência se transforma lentamente em presunção pública de culpabilidade. Aqui podemos reconhecer a indecente história do famoso PowerPoint – e ela, a história, não seria possível sem a cumplicidade do jornalismo brasileiro.

É ILEGÍTIMO O PODER, DAS SOMBRAS, QUE NASCE DA ALIANÇA ENTRE UMA CERTA IMPRENSA E UMA CERTA JUSTIÇA

E, por favor, não se equivoquem. Essa violência simbólica é ainda mais selvagem e feroz do que a violência da ditadura. A violência física de outrora era recebida com a reserva mental das vítimas, pois eram os ditadores e seus esbirros a exercê-la. Esta nova violência é mais insidiosa porque pretende nos convencer de que é exercida em nome da democracia e de que tem o nosso consentimento. A coação é exercida com tal perfídia e crueldade que a maioria das vítimas se sente ainda no dever de dizer que confia na Justiça e que com ela deseja colaborar. Abusador e abusado entram assim numa dança elegante e perfeita, em que, como afirma Bourdieu, o poder “é exercido com a cumplicidade daqueles que não sabem que lhe estão sujeitos”. Este novo poder, que nasce da aliança de um certo jornalismo com uma certa Justiça, é um poder oculto, um poder ilegítimo, um poder das sombras. À luz do dia é um fracasso.

Ao longo de todo o processo, o jornalismo brasileiro transformou as alegações da acusação em fatos incontroversos. Mais: o jornalismo brasileiro permitiu, e nalguns casos aplaudiu, os desmandos das autoridades, tentando fazer-nos crer que eles eram motivados por um qualquer “superior interesse público”. Apesar de os abusos serem evidentes (como foi o caso do vazamento da célebre escuta telefônica entre Dilma e Lula) ninguém, salvo as notáveis exceções a que farei referência, quis falar deles com reprovação, como se o silêncio bastasse para tornar o crime inexistente. O jornalismo interpretou os seus poderes como se lhe competisse dizer o que é escandaloso e o que não é, porque só ele tem o poder de criar escandalizados. Como é sabido, não há escândalo sem escandalizados.

Ainda assim, houve exceções. A batalha foi desigual, mas houve quem combatesse. Desde logo esta revista onde escrevo. Também a chamada imprensa alternativa denunciou o que se estava a passar a partir dos seus canais da internet. De resto, na imprensa tradicional, houve vozes isoladas. E justamente por essa razão, por serem poucas, devem ser especialmente referidas. Esse foi o caso de Reinaldo Azevedo, que comecei a seguir de longe, em 2015, e cuja recusa em seguir a maré do jornalismo laudatório das instituições penais me pareceu de uma coragem singular. Não sendo nenhum compagnon de route do Partido dos Trabalhadores, não hesitou em remar contra a maré e tomar a dianteira na defesa dos direitos individuais de Lula e na denúncia dos abusos das autoridades judiciais. Sempre gostei de gente assim. Gente que conhece o momento para dizer não. Gente que sabe quando se aproxima a tempestade que vale a pena enfrentar. Gente que põe imediatamente de lado o cálculo e a carreira quando está em causa a civilização em que acredita. Gente que nos faz ter esperança de que o jornalismo ainda existe. Sim, esta decisão da ONU condena os abusos do sistema judicial, mas também interroga os jornalistas brasileiros: onde estavam vocês? •


*Foi primeiro-ministro de Portugal.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1207 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Onde estava o jornalismo?”

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo