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Opinião

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O visível e o invisível

Quando Lula afirma não serem gênero e raça fatores de decisão para a indicação ao STF, o enunciado revela exatamente o contrário do que é dito

O plenário do STF na votação sobre o Marco Temporal. Foto: Carlos Moura/SCO/STF
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A morte prematura do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, aos 53 anos, legou ao mundo um de seus textos mais intrigantes: O Visível e o Invisível. No livro inacabado, e nas notas de trabalho que o acompanham, temos acesso à formulação e à estrutura do pensamento de um dos grandes nomes da fenomenologia.

Vale pontuar que o capítulo mais extenso da obra se dedica a examinar o conceito de “grandeza negativa” em Kant, contrapondo-o ao pensamento desenvolvido por Sartre, em O Ser e o Nada.

Mas o que nos leva a, em 2023, retomar esses nomes, conceitos e obras? A resposta é, ao mesmo tempo, visível e invisível, a depender da posição política e do letramento racial de quem pretender pensar a questão.

A ausência absoluta e histórica de mulheres negras na Suprema Corte brasileira vai configurar-se de forma mais ou menos crítica e flagrante de acordo com o entendimento de mundo que diferentes setores da população brasileira têm.

Em relatório recente, Oxfam e Instituto Alziras mapearam a predominância populacional de mulheres negras no Brasil, e sua ausência representativa em espaços de poder – como as esferas legislativas e executivas. Durante as últimas eleições municipais, em 2020, por exemplo, havia uma candidata negra para cada 11 concorrentes brancos.

Apesar de corresponderem a um quarto da população, as mulheres negras estão à frente de menos de 5% dos municípios do País. Minoria no cômputo de dados sobre o poder, as mulheres negras tornam-se maioria quando os dados tratam de violência.

Segundo pesquisa realizada em 2022, pelo jornal O Globo, 87,5% das candidatas a cargos naquele ano foram vítimas de violência política de gênero. De silenciamentos a ameaças de morte, o Ministério Público Federal (MPF) registrou dezenas de casos dessa ­modalidade de violência.

O fato de que setores da sociedade demandem do presidente Lula a correção de um curso danoso e nefasto de nossa história deveria ser visto com orgulho. O que vimos, no entanto, foi o ataque covarde, violento e irracional de grupos próximos ao PT a figuras que somaram suas vozes à campanha.

Talvez o caso mais notório e flagrante tenha sido o do apresentador ­Gregório Duvivier, alvo de linchamento virtual por dizer o óbvio. Em seus 130 anos, a Suprema Corte deste país de maioria negra e feminina, foi ocupada, quase exclusivamente, por homens brancos. Apenas três mulheres brancas e três homens negros já estiveram na função de ministros, ante 159 homens brancos.

Quando Lula afirma, publicamente, que gênero e raça não serão fatores de ­decisão para a indicação ao STF, é derradeiro pensarmos sobre o que fica visível e invisível na declaração. O enunciado revela exatamente o contrário do que é dito.

Se raça e gênero não influenciam a decisão, por que apenas uma raça e um gênero têm ocupado, sistematicamente, quase todas as vagas de cargos nos quais se exerce o poder de decisão institucional em nosso país?

Se buscarmos crer em uma resposta mais ética, em que o fator decisivo para a indicação seria o conjunto de saberes jurídicos e constitucionais, isso significaria que juristas negras são incompetentes?

Se buscarmos uma resposta mais “estratégica” em que Lula visa nomear alguém próximo e que proteja o País de um novo golpe institucional, isso significaria que não há mulheres negras no entorno do PT? Em qualquer dos casos, o que fica visível preocupa por aquilo que deseja invisibilizar.

Rosa Weber, que se aposenta em breve e será substituída por nova indicação do presidente, tinha uma tendência de voto 75% das vezes favorável aos trabalhadores, no que diz respeito ao direito do trabalho, segundo o Anuário da Justiça ­Brasil 2022. Já pesa contra Lula a indicação de Cristiano Zanin, que, em seus primeiros votos como ministro, se mostrou de perfil conservador e reacionário, estando, por vezes, ao lado dos votos de ­Nunes Marques e André Mendonça – ambos indicados por Bolsonaro.

Se não for para tocar as estruturas, mudar os espaços de poder e contemplar o povo nas decisões, para que serve a esquerda na política? Somos um país organizado pelo racismo, marcado pela última abolição do continente e pela violência contra grupos minorizados.

Se essas questões permanecem invisíveis, é impossível pensá-las em chave de mudança. Estamos assolados por uma incapacidade, ou por uma falta de desejo de visibilização, e isso é grave. •

Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O visível e o invisível’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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