Opinião

O tempo que o tempo tem

Recordo com saudade Aldir Blanc e respondo ao tempo “que ele aprisiona, eu liberto; que ele adormece as paixões, eu desperto”

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O tempo perguntou ao tempo, quanto tempo o tempo tem. O tempo respondeu ao tempo, que o tempo tem o tempo que o tempo tem. É um trava-línguas clássico. E sábio. Eu gosto também da ideia de um rato roendo a roupa de um rei. Um rato qualquer. E qualquer rei. Mas o tempo me enfeitiça mais.

Especialmente agora, que o tempo tem o tempo que o tempo tem. E todos nós parecemos ter tanto tempo que nosso tempo parece estar no fim.

Eu me pego sistematicamente sonhando com algumas cenas. Sempre as mesmas. Pode ser que a minha saúde mental esteja abalada. Ou que eu esteja vislumbrando a iluminação tal qual um Buda. Ser um Buda na pandemia.

Cena 1: Raul Seixas está na minha frente cantando SOS Disco Voador. “Oô, seu moço do disco voador, me leve com você pra onde você for. Oô seu moço, mas não me deixe aqui enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí.” Olho pra ele com minha cara de sempre e mando um “vá à merda, Raul”.

Cena 2: Sou eu jogando xadrez com a morte de Ingmar Bergman em O Sétimo Selo. Mas a morte não tem aquela careca lisa, imortalizada. A morte que joga comigo tem um cabelo engomado, olhos claros, cheira a perfume comprado no aeroporto, em dólar. Usa camiseta polo, um pulôver no pescoço aguardando um frio que jamais chegará. Jogamos. Meu rei está vulnerável, eu sei. A morte ri. Eu não consigo mandar a morte à merda.

Cena 3: Sou um jornalista no cercadinho de Bolsonaro num dia qualquer. Ele chega, fala uma galhofa e eu mando o presidente à merda, mostro o dedo do meio, coloco a mão nos Países Baixos. Puxo o coro de “Ei, Bolsonaro, vai tomar caju”. E todo mundo vem comigo. Vira um treco futebolístico. Bolsonaro ri. Depois chora.

Recentemente vi uma live de um psicólogo analisando como nossa saúde mental ficará quando sairmos desta. Estaremos revitalizados, tomo a liberdade de conjecturar. Porque aprendemos pela dor. E ninguém em sã consciência imaginou que um rato chegaria a rei nesta terra de ninguém. Muito menos que um vírus infectaria todos os reis e todos os ratos deste globo desigual, ainda que redondo. E ninguém imaginou que pai, tio, avô, primo, amigo apoiariam a barbárie. Ninguém ainda acredita.

O tempo é rei. Para cada boçal negacionista haverá um cientista. Para cada racista, uma justiça. Para cada rato, um gato. Hoje vou sonhar que sou um gato. Enorme. No meio de milhares de gatos. Afastando os ratos, mandando-os para uma temporada longa na umidade do esgoto de onde saíram.

O tempo tem seu tempo. Nós temos o nosso. Recordo com saudade Aldir Blanc e respondo ao tempo “que ele aprisiona, eu liberto; que ele adormece as paixões, eu desperto”.

O rato, acredite, vai roer a roupa do rei. Até que não sobre um trapo.

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