Fernanda Zanelli

Especialista em programas sociais e produção de conhecimento no Itaú Social. Mestranda em Ciência da Informação (ECA-USP). Possui especialização em Globalização e Cultura e em Gestão de Políticas Culturais

Opinião

O soprar das bolhas de sabão: a leitura e a memória como prática social

Vivemos um período em que o imediatismo e a profusão de conteúdos tendem a asfixiar a transformação perene do curso da aprendizagem

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Para tratar de leitura e memória, recorremos às bolhas de sabão. Além de exercer um fascínio indubitável por onde passa e lançar sobre a infância sua aura sagrada, as bolhas de sabão parecem existir também para nos acudir nas difíceis metáforas. Com toda sua “esfericidade”, como traz o escritor argentino Júlio Cortázar sobre o conto perfeito, e sua impecável estrutura – “nem realidade nem sonho”, como bem observou Lygia Fagundes Telles – elas estão por aí a capturar o incapturável.

Se a escrita de uma história é soprar (o prenúncio da criação), a leitura literária é flutuar: deixar-se absorver por uma atmosfera particular, um pacto selado entre autor e leitor. Ler também pode ser um ver através, o espiar do mundo real por dentro de uma membrana mágica. Uma bolha que, como o próprio termo sugere, é feita para estourar.  Trata-se de uma suspensão temporária que permite a elaboração da realidade sem a desconexão com ela.

A Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2020 revelou que são os professores (15%) e as famílias (19%) os principais incentivadores do ato de ler, e por isso a mediação é chave. A leitura mediada como rito tem o poder de acordar a palavra na página, de despertá-la para sua missão principal que é brotar – a mata densa do aprendizado depende da palavra brotada. Assim, o objeto livro abre suas páginas e possibilidades para o gesto de ler com as crianças: nas bibliotecas em grandes rodas, nas casas à beira do sono, no sussurro ao pé da barriga das gestantes e em muitos outros momentos amparados por esta bolha mágica que tantas vezes se chama leitura.

A obra literária, ficcional ou não, é um ponto de contato entre as novas gerações e ancestralidade do saber – do chão da experiência ao sobrevoo do conhecimento como legado. Legado, aliás, que também se forja na vivência da leitura como prática social, e que se amplia em ações realizadas por instituições da sociedade civil e políticas públicas que têm um papel fundamental para a formação de um país leitor. Estas iniciativas se desdobram em múltiplas camadas de atuação, como a mobilização pela garantia do direito à leitura, a qualificação de acervos, a oferta de livros de qualidade e também a formação de mediadores de leitura. É ainda por se tratar da história de muitos – autores, voluntários, educadores, mediadores, bibliotecários, famílias e, principalmente, as crianças – que os vários projetos de fomento à leitura precisam ser fortalecidos e registrados; afinal, é o fazer coletivo que tece a memória como processo social.

Produzir conhecimento com lastro em programas e políticas sociais é também uma forma de celebrar, daí a importância de, com intencionalidade, narrarmos a longevidade e a diversidade das ações de leitura que encontram nos territórios espaços para amadurecer. Vivemos um período em que o imediatismo e a profusão de conteúdos tendem a asfixiar a transformação perene que só o curso da aprendizagem contínua e sustentada pode garantir.

Como as bolhas de sabão, a memória coletiva tem contornos sensíveis ao toque, por isso não se trata de aprisioná-la num recipiente inacessível, ou de agarrá-lo com as mãos urgentes. Ao contrário, elas dependem do sopro contínuo e de paredes tão leves quando transparentes para se manterem no ar. E é assim, e talvez só assim, que elas são capazes de nos guiar através dos tempos e acordar em nós lições adormecidas.

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