Alberto Villas

villasnews@uol.com.br

Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

O que você leva nas mãos e outras histórias

A curiosidade sobre o que as pessoas ouvem na rua e para onde elas estão indo pode render muitas histórias interessantes

O que você leva nas mãos e outras histórias
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1.
Olhando assim pela janela do carro, do ônibus, do apartamento, andando pela calçada quase sempre esburacada, sentado na mesa de um bar tomando uma cerveja, percebia que cada pessoa que passava, levava alguma coisa nas mãos.

Homens levavam pacotes, pastas, saquinhos, embrulhos grandes e pequenos. Mulheres basicamente bolsas de couro ou imitando couro e sacolas de papel ou plástico. O que esses homens e essas mulheres levam tanto, pra lá e pra cá? Não via uma viva alma nas ruas com as mãos abanando.

Daí surgiu uma ideia de pauta para o telejornal que fazíamos todo final da noite. Na reunião diária, a mais democrática da história do jornalismo, todos participavam: editores, redatores, produtores, contínuos, o cara do café, a secretária, a faxineira e quem mais aparecesse. Todos davam sugestões, pitacos e o telejornal acabava ficando pronto.

 

Apresentado por Lillian Witte Fibe, o Jornal do SBT muitas vezes batia o da Globo. No início, não foi fácil. Lillian vinha da Vênus Platinada, mais precisamente do Planeta Economia e gostava de falar de debêntures, do índice Nasdaq, da Selic, da inflação, do overnight, da cotação do dólar e do ouro. Lillian não distinguia o funk do rap, nem o rap do rock. Não sabia quem era o Alceu Valença de Coração Bobo ou Geraldo Azevedo de Dia Branco, tampouco o Zé Ramalho de Vida de Gado.

A pauta foi fechada e a repórter foi pra rua perguntar o que as pessoas estavam levando nas mãos, dentro da bolsa, da pasta, do embrulho, do saquinho de plástico. O resultado foi isso aqui, ô ô, um pedacinho do Brasil.

Encontramos gente levando muda de jabuticabeira da casa da mãe, documentos para reconhecer firma, resultados de exames médicos, um jeans pra dar bainha, umas comprinhas de supermercado, um macaco Murphy pro filho e, finalmente um homem magro que fez questão de rasgar o pacote aos poucos e ir mostrando para a câmara o que tinha lá dentro: uma gaiola dourada para colocar o seu curió.

2.
O forte do nosso telejornal era o comportamento. O sucesso da matéria mostrando o que as pessoas estavam levando nas mãos foi tão grande que tivemos uma outra ideia de pauta. Num mundo ainda sem Spotify, a onda era o walkman. As pessoas começaram a usar fone de ouvido e nós fomos procurar saber o que elas estavam ouvindo no meio da rua.

Microfone do SBT na mão, a pergunta do repórter era curta e grossa: O que você está ouvindo? Passado o susto, ninguém recusou em responder: curso de inglês, Fagner cantando Borbulhas de Amor, Gabriel, o Pensador cantando o rap Tô Feliz, matei o presidente, Fernanda Abreu, Rio 40 graus e os Engenheiros do Havaí, Muros e grades.

Estou ouvindo November Rain, com Guns N’Roses, Make It Happen, com Mariah Carey, Remember the time, com Michael Jackson. Estou escutando as Lições de Sabedoria, de um mestre da seita Seicho-no-Ie.

A matéria foi pro ar e, de novo, outro sucesso de público e crítica. O editor ilustrou cada música com trechos de videoclipes. Era assim que chamávamos, na era da MTV. Lilian Witte Fibe voltava com cara de assustada depois da exibição dessas matérias e comentava: Só mesmo o Jornal do SBT!

3.
Para onde você está indo? Essa foi a nossa terceira e última reportagem da série. O objetivo era espalhar três repórteres pelos cantos da maior cidade da América do Sul e perguntar para cada um: Para onde você está indo?

Para onde será que estava indo essa multidão às oito e pouco da manhã? Consertar um vazamento na Casa Verde. Pro trabalho. Pro supermercado. Pra escola. Fazer uma entrevista de trabalho. Pra padaria tomar café. Pra farmácia comprar absorvente. Pra uma obra no Itaim, onde estou pintando um apartamento.

Aquela imagem acelerada da multidão correndo pelo Viaduto do Chá, com uma música de Tom Zé ao fundo, impressionava. São oito milhões de habitantes/De todo canto e Nação/Que se agridem cortesmente/Correndo a todo vapor/E amando com todo ódio/Se odeiam com todo amor.

O último entrevistado foi um motorista musculoso da linha Cohab Adventista, que fechou a série respondendo: Estou indo pro ponto final.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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