Andressa Pellanda

Coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, é doutoranda em Ciências (IRI/USP), é cientista política, pesquisadora, educadora popular e jornalista

Opinião

O povo cabe no orçamento. E em nossas escolas, cabem todas as pessoas

O Decreto 10.502, da Política Nacional de Educação Especial, precisa ser rejeitado pelo Supremo

Todas as evidências reafirmam que a aprendizagem é melhor nas escolas comuns (Foto: iStock)
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Há 11 meses, em 30 de setembro de 2020, foi publicado o Decreto Nº 10.502, que institui a “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”. Na época, as organizações da sociedade civil, ativistas, pesquisadores e integrantes da comunidade escola de todo o país se manifestaram contrários a tal política.

Representando a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, publiquei carta à sociedade nrasileira, indicando que tal decreto representa um retrocesso aos direitos adquiridos como disposto na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU e na Constituição Federal de 1988, por fomentar políticas excludentes, segregatórias e discriminatórias.

A história da inclusão de pessoas com deficiência na escola comum é recente. Somente em 2008, o número de matrículas nas escolas comuns superou o das instituições de educação especial. Em 2020, chegamos a mais de 90% de estudantes com deficiência matriculados nas escolas comuns.

Em relação às pessoas com deficiência, o consenso atual está escrito na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, apresentada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em dezembro de 2006, e já assinada por mais de 158 países. No Brasil, como em outros 147 países, esse documento foi ratificado. Aqui, ele tem status de emenda constitucional, conforme o procedimento do § 3o do art. 5º da nossa Constituição Federal de 1988.

Isso significa que todas as outras leis nacionais devem seguir o que está na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo. Essa Convenção traz a ideia de que a não participação de uma pessoa com deficiência é determinada pelo ambiente. Desse modo, define que “[…] pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas” (ONU, Art. 1, 2006).

Nesse momento é importante qualificar o que vem a ser um sistema educacional inclusivo como aquele que não deixa ninguém de fora. Para referendar o que está estabelecido na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em 2016, o Comitê da Organização das Nações Unidas responsável pelo monitoramento de sua implementação expediu o Comentário Geral nº 4 sobre o artigo 24. No final das discussões, a demanda sobre a continuidade dessas escolas segregadas foi rejeitada tanto em termos de princípio como em termos pragmáticos. Na prática, portanto, o investimento em escolas especiais milita contra o princípio da inclusão.

“O Brasil, mais uma vez, desonra, descumpre e ignora seus compromissos internacionais, visto que o país é signatário de documentos que pugnam pela inclusão, incondicionalmente”, concluiu a Carta, à época, já que diferenciar para excluir é discriminação.

De lá pra cá, entramos, junto com diversas organizações que integram a Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva em Ação Direta de Inconstitucionalidade 6590 no STF, como amicus curiae, pela inconstitucionalidade do Decreto. O relator da matéria, Ministro Dias Tóffoli, deferiu liminar em 1 de dezembro de 2020, suspendendo a eficácia do decreto e submetendo a decisão a referendo do plenário.

Nos últimos 23 e 24 de agosto, então, houve uma série de audiências com a participação dos amici curiae em debate no STF acerca do tema. Foram apresentados 28 pedido, sendo 20 pela inconstitucionalidade do decreto e 8 a favor. Dos 114 órgãos públicos, universidades, organizações da sociedade civil e coletivos que manifestaram interesse em participar da audiência pública, 56 foram habilitados para expor seus argumentos.

Apesar do interesse das instituições especializadas na continuidade desse modelo segregatório, todas as evidências reafirmam que a aprendizagem de todos é melhor nas escolas comuns, a sociedade é a favor da educação inclusiva e este é um direito da criança e do adolescente como garantido pela Convenção sobre os Direitos da Criança e pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, tratados internacionais de direitos humanos pactuados na ONU e ratificados no Brasil.

 

Ainda, em minha exposição, na terça passada, demonstrei que a adoção do modelo de atendimento que privilegia o lócus da escola regular pública indica a opção de ampliação do atendimento público em detrimento do privado, direcionando a canalização dos recursos públicos para a escola pública.

Estudos demonstram que o incentivo à adoção da educação inclusiva, nas últimas décadas, resultou em ampliação no acesso via classe comum em detrimento de outras formas de atendimento. De acordo com dados do Inep, entre 2009 e 2019, houve aumento de 95,5% nas matrículas de educação especial, sendo um acréscimo de 181,8% das matrículas em classes regulares e redução de 36,6% nas escolas e classes especiais.

Para garantia de tais matrículas, exige-se financiamento adequado, em regime de cooperação e colaboração federativa, com a garantia de “[…] padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem”, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a LDB.

Tal padrão de qualidade se refere, hoje, ao Custo Aluno-Qualidade, o CAQ, elaborado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação e hoje previsto pela Constituição Federal, por meio da recém aprovada Emenda Constitucional 108, do novo e permanente Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb.

Destaco, aqui, que a política de fundos, do Fundef ao Fundeb que teve vigência entre 2007 e 2020, apontam para uma trajetória crescente nos valores aluno/ano, repercutindo em um aumento das receitas destinadas à educação inclusiva. É o que demonstram Souza, França, Castro, e Prieto, em artigo publicado em 2020 em revista da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação, a Fineduca, que integra nosso Comitê Diretivo e tem prestado relevantes colaborações para o avanço das políticas de financiamento da educação no Brasil.

As autoras demonstraram que o efeito indutor do aumento de matrículas na política do Fundeb pôde ser observado tanto no crescimento dos valores por aluno/ano, quanto no aumento da diferença desse valor por aluno da educação especial em relação ao das séries iniciais urbanas do ensino fundamental. No âmbito nacional, houve um aumento constante nas matrículas do alunado elegível ao atendimento pela educação especial nas redes estaduais, passando de 0,6% do total de matrículas da educação básica em 2009 para 2,3% em 2019.

Embora o novo e permanente Fundeb não tenha garantido os avanços necessários no que tange a educação especial para o fortalecimento da educação inclusiva, pública e gratuita – e isso é um ponto que precisa ainda de correções – o movimento crescente de financiamento para tal educação desde 2007 até hoje e, sendo a educação especial contemplada como modalidade de ensino, representou um avanço para a materialização da política de educação especial na perspectiva inclusiva no Brasil.

Nesse sentido, sob a ótica do financiamento da educação, é importante dizer que é possível garantir os preceitos constitucionais que determinam que a educação pública e gratuita deve ser inclusiva para todas as pessoas, com qualidade.

Os estudos, as pesquisas, as políticas públicas, a existência e o desenvolvimento de nossos estudantes com deficiência nas escolas regulares mostram tais fatos, que são inegáveis.

E vínhamos provando isso com os avanços das matrículas e de seu financiamento, ainda que aquém do necessário. Com a regulamentação e a implementação plenas do novo e permanente Fundeb, juntamente com o Sistema Nacional de Educação e do próprio Custo Aluno-Qualidade, poderemos avançar em termos de financiamento adequado para garantir educação inclusiva e de qualidade, com a infraestrutura necessária, superando o subfinanciamento e os desafios de hoje.

O compromisso público com a garantia dos direitos para todas as pessoas é o que se deve buscar e isso se faz com priorização e investimentos públicos, e não naturalizando más gestões e adequando a lei às práticas violadoras de direito. É possível e é preciso garantir os direitos humanos e o direito à educação a todas as pessoas, sem exceções, sem deixar ninguém para trás, sem discriminações.

O povo cabe no orçamento público e, em nossas escolas, cabem todas as pessoas, em suas diversidades. Acontece que os processos decisórios na área da educação especial têm sido contrários à agenda de direito, conforme posto no Decreto 10.502.

O direito à saúde pública, o direito ao lazer, o direito às suas próprias escolhas e decisões, o direito à completude da vida, enfim, o direito à educação de todas as pessoas precisam parar de passar por decisões e influências nada comprometidas com o pacto social firmado em 1988 e nada comprometidos com a inclusão, com a cidadania, com o desenvolvimento integral e com as vidas de nossa população.

É preciso parar as decisões e as políticas elaboradas por quem acredita que pessoas com deficiência “atrapalham”.

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