Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

O PL das Fake News e a tirania dos homens de bem

Seria uma insanidade substituir os preceitos e a força da lei pela presunção de bondade de um grupo ou de indivíduos

Jair Messias Bolsonaro. Foto: Sergio Lima / Poder360 / AFP
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“Nós defendemos o armamento para o cidadão de bem, porque entendemos que a arma de fogo, além de uma segurança pessoal para as a famílias, ela também é a segurança para a nossa soberania nacional e a garantia de que a nossa democracia será preservada”. Assim falou Bolsonaro no dia 17 de maio de 2022.

“Cidadão de bem” é a expressão que denuncia as desavenças de Bolsonaro com os princípios que regem a convivência social ao abrigo do Estado Moderno. As formações políticas que se consolidaram desde a Era do Iluminismo e da Revolução Francesa não admitem aos cidadãos invocar a própria santidade, honestidade ou boa consciência para contestar a universalidade da lei ou os procedimentos legais.

Seria uma insanidade, no mundo moderno, substituir os preceitos e a força da lei escrita pela presunção de bondade intrínseca de um grupo social ou de um agrupamento de indivíduos. Essa é a questão envolvida nos trancos e barrancos que acompanham a aprovação do Projeto de Lei das Fake News.

Não apenas aqui, neste Brasil de tantos atrasos e tantas ignorâncias, mas no mundo inteiro a crise de legitimação do Estado vem suscitando “ondas regressivas” de apelo às falsidades da consciência moralista e hipócrita, em prejuízo da segurança e da liberdade dos cidadãos. Nessa toada, a liberdade de expressão tem sido invocada para a prática de agressões e ameaças como aquelas que infestam as redes sociais e passam impunes. As mais preocupantes são as manifestações que carregam desdouros aos direitos e liberdades “dos outros”. Isso quando não menosprezam diretamente as instituições do Estado de Direito que garante os direitos e liberdades de todos e qualquer cidadão.

As reflexões mais profundas sobre a ética da modernidade repeliram sempre com energia as tentativas conservadoras de desmoralizar o formalismo da lei em nome da espontaneidade, dos bons sentimentos, da palavra de honra. Na verdade, os óbices e punições aos crimes praticados nas plataformas totalitárias não requerem um projeto de lei, mas tão somente a aplicação rigorosa das leis existentes, salvaguardadas na Constituição e nos Códigos Penal e Civil.

É oportuno invocar a sabedoria de Thomas Hobbes: “… cada qual governado por sua própria Razão, e não havendo algo que o homem possa lançar mão para ajudá-lo a preservar a própria vida contra os inimigos, todos têm direito a tudo, inclusive ao corpo alheio. Assim perdurando, esse direito de cada um sobre todas as coisas, não poderá haver segurança para ninguém (por mais forte e sábio que seja), de viver durante todo o tempo que a Natureza permitiu que vivesse”.

Hobbes rejeitou a visão do “estado de natureza” como um passado idílico em que os homens conviviam pacificamente, em que o homem era naturalmente bom. A convivência pacífica só pode surgir na sociedade em que o Estado está consolidado, e a sociedade civil está submetida às leis emanadas do Soberano. Sublinho a palavra leis. O soberano tem o dever primordial de garantir a segurança de todos os cidadãos contra as ameaças de violência de uns poucos.

Na Filosofia do Direito, Hegel condena as queixas e reações contra a involução que pretende impor a moral particularista. “São não apenas errôneos estes protestos, mas revelam um apego malsão à sua própria particularidade que é desfrutada narcisisticamente sob o disfarce da moralidade”.

Emile Durkheim ensina que para Rousseau e Kant, “as únicas formas morais de agir são aquelas que podem se adequar a todos os homens indiscriminadamente, ou seja, que estão envolvidas na noção de homem em geral”.

A Modernidade carrega em seu Espírito a missão de universalizar os direitos e as obrigações enquadrados na formalidade da lei. Quando o Espírito descuida, acordam os pequenos demônios da opressão, do particularismo e da submissão dos indivíduos à vontade de outros indivíduos. Essa é a essência da liberdade dos que se manifestam nas ruas, clamando pelo fechamento do STF.

A tirania dos cidadãos de bem ensina que o indivíduo é naturalmente bom, capaz de discernir entre o justo e o injusto, o certo e o errado. A sociedade e as instituições, ao contrário, são corruptas e corruptoras. Para essa gente, os compromissos típicos da democracia são obstáculos para a realização da “verdadeira justiça”, aquela que está, desde o útero materno, no coração dos homens. As instituições da sociedade, sobretudo o Estado, com suas instâncias de controle, suas leis ambíguas e seus métodos de punição insuficientemente rigorosos, tornam a Justiça uma farsa, um procedimento burocrático e ineficaz.

A história, sobretudo a nossa, está aí para mostrar que nenhum regime despótico deixou de invocar, nos seus momentos preambulares, as virtudes, excelências e a superioridade de sentimentos dos “homens que vieram para praticar o bem”.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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