Rodrigo Ianhez

Rodrigo Ianhez é historiador especialista no período soviético e mora em Moscou há mais de uma década.

Opinião

O Partido Comunista russo e o putinismo vermelho

Submentendo-se cada vez mais aos desígnios do governo russo, o PCFR abre mão do protagonismo na oposição e assiste impassivo ao sequestro de símbolos soviéticos

Apoiadores do Partido Comunista Russo caminham em direção ao mausoléu de Lenin. Foto: Arquivo/AFP
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Muito se discute sobre a eleição presidencial russa, e, no entanto, o resultado não deve surpreender ninguém. Proponho abordar o tema da tão questionada democracia na Rússia por outro ângulo, aquele do papel exercido pela esquerda institucional, na figura do Partido Comunista da Federação Russa (PCFR).

Identificado frequentemente como “o maior partido de oposição da Rússia”, há pelo menos uma década (exceto por episódios esporádicos de confrontação), o PCFR vem se submetendo aos desígnios do governo russo de forma cada vez mais dócil.

Exemplo disso é a atuação da sigla na presente eleição: os comunistas, virtualmente, abriram mão de participar competitivamente das eleições e correm o risco de perder o tradicional segundo lugar, posição que detêm desde os anos 90, para algum dos outros dois partidos da oposição tolerada.

Talvez valha a pena retornar para os infames anos 1990, período da criação da sigla que clama herdar o legado do Partido Comunista da União Soviética. Surgido em 1993, quando a ressaca da Perestroika já começava a tomar uma forma aguda na assim chamada “Terapia de Choque”, a agremiação, que num primeiro momento reuniu desde social-democratas até stalinistas, rapidamente caiu sob o controle do, hoje quase octogenário, Guennady Ziugánov.

Em 1996, em seu melhor resultado eleitoral, o candidato comunista conquistou 40% dos votos contra o então presidente (e favorito da mídia corporativa) Boris Ieltsin, que, diante da ameaça de derrota, se valeu até mesmo de marqueteiros importados dos Estados Unidos. Na ocasião, os inúmeros indícios de fraude por parte de Ieltsin não causaram qualquer comoção no Ocidente. Desde então, o PCFR orbita em torno da figura de Ziugánov.

A idade avançada do veterano comunista pode explicar sua não participação nas últimas eleições presidenciais. Em 2018, o candidato do PCFR foi Pavel Grudínin, proprietário multimilionário da “Fazenda Coletiva Lênin”, maior produtor de morangos da Rússia.

Neste ano de 2024, a escolha de candidato dos comunistas é ainda mais insólita do que aquela de um empresário: Nikolai Kharitonov, apenas pouco mais de 3 anos mais jovem e, no entanto, bem menos enérgico que Ziugánov, se destaca apenas por sua notável falta de carisma e aberta admiração pelo adversário Pútin, a quem, garantiu, não criticaria durante as eleições (não que o faça fora delas).

Entre os deputados comunistas da Duma Estatal, o Parlamento da Federação Russa, Kharitonov é o único que ostenta na lapela um pin com a bandeira nacional tricolor, ao invés do tradicional estandarte vermelho da União Soviética. Talvez, aí esteja a chave para explicar uma candidatura que, nas palavras de comunistas graduados, como Nikolai Platoshkin, não foi uma escolha discutida pelo partido.

Para se utilizar de uma famosa – e injusta – caracterização de Stálin, Kharitonov é um “borrão cinzento”, que não representaria qualquer ameaça à reeleição de Pútin. Pelo contrário, sua votação potencialmente inexpressiva promete garantir ao Kremlin o excelente resultado que tanto desejam apresentar como evidência de amplo apoio popular ao esforço de guerra na Ucrânia.

A formulação teórica semi-oficial de Ziugánov na condução da linha política do PCFR também aponta para a submissão de seu partido aos interesses do Kremlin: Pútin, a qualquer momento, daria uma “guinada à esquerda” (levy povorot), ou seja, reforçaria o controle do Estado sobre a economia e ampliaria os gastos sociais.

Essa esperança passiva – muito contrastante com o declarado objetivo de ruptura revolucionária do marxismo – pode ser exemplificada em um episódio que viralizou: o líder do partido comunista pediu pateticamente para que o presidente russo passasse a implementar “medidas socialistas” na economia, como que por gentileza, o que foi respondido com risadas debochadas.

Trata-se de uma tática que aprofunda ainda mais a irrelevância do partido, contente com aquele quadro político vigente na Rússia: a manutenção de uma camada cosmética de saudosismo soviético aplicada sobre um núcleo de chauvinismo.

O PCFR sela o próprio destino conforme assiste impassivo ao sequestro de símbolos soviéticos, ainda que desconectados de qualquer passo em direção ao socialismo. Dessa forma, a opção dos comunistas é por abrir mão do protagonismo na oposição, sacrificando, inclusive, os ideais marxistas mais basilares.

Todo esse movimento se dá logo em seguida às eleições parlamentares de 2021, quando o PCFR conquistou impressionantes, para o contexto da Rússia, 19% das cadeiras da Duma e, mesmo assim alegou fraude. Resultado esse que não veio sem sua dose de polêmica: os comunistas foram os maiores beneficiados pela plataforma “Voto Inteligente” (Umnoe Golosovanie) do falecido opositor Alexei Navalny, que defendia o voto em qualquer nome que tivesse a maior chance de derrotar os candidatos do partido governista Rússia Unida.

O verdadeiro escândalo, porém, residiu no oportunismo assumido pelo PCFR no contexto da pandemia. Diante de uma forte onda de rejeição à vacinação entre a população russa, os comunistas decidiram surfar na onda negacionista, chegando a classificar o Covid-19 como uma conspiração da burguesia internacional encabeçada por Bill Gates. A sórdida estratégia gerou resultados eleitorais.

E, no entanto, a tendência de submissão ao Kremlin apenas se aprofundou desde o início do conflito com a Ucrânia, a qual Ziuganov e seus camaradas passaram a apoiar incondicionalmente, após um curto momento de vacilação. Na visão de teoristas ligados ao partido, o relativo isolamento da economia provocado pelas sanções seria a oportunidade ideal para a “guinada à esquerda” de Pútin que, apesar de tão esperada, não dá nenhum sinal de chegada.

Na contramão, há, inclusive, mais do que meros sinais: nos últimos anos, uma série de reformas vêm restringindo os direitos de trabalhadores e aposentados. A tais reveses nos direitos trabalhistas, assim como a erosão de sua própria base de poder político, o Partido Comunista assiste impotente.

Há sinais de dissidência interna e Ziugánov está cada vez mais próximo do momento em que terá de passar seu legado para frente. Se o PCFR conseguirá tomar as rédeas de sua própria história ou continuará servindo como oposição institucional, apenas o futuro dirá.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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