Opinião

O pão e circo criado pela casa-grande forjou um país de foliões inertes

O termo folia origina-se do italiano follia, que significa loucura. Permito-me contar o meu encontro com o carnaval

E a Rua Direita festeja. Foto: Reprodução
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Naquele dia, meu pai, Giannino, padeceu de uma súbita crise de catatonia. Afundou em uma poltrona e encarou em absoluto silêncio o vácuo de Torricelli. Felizmente, o fenômeno não teve longa duração, apenas cerca de uma hora. As razões estavam claras. Era um domingo de fevereiro de 1947. A família havia chegado a São Paulo em agosto de um ano antes, depois de uma viagem de trem noturno do Rio de Janeiro ao planalto de Piratininga. No beliche eu havia passado uma noite praticamente insone ao imaginar a travessia sobre trilhos atirados no meio de uma floresta onde se amoitavam pumas e jaguatiricas.

Perdoem os leitores a interrupção e volto a focalizar a crise paterna. Dera-se por volta das 5 horas da tarde, quando de súbito, sem aviso prévio, uma turba de damas e cavalheiros descabelados, entregues a uma cantoria indecifrável, entrou na nossa casa, um sobradinho no Jardim Paulistano, e dançando com trejeitos de tribo da savana, atravessou o espaço sem deixar de alcançar, pela escada, o primeiro andar. Tratava-se, calculo a olho, de mais de 30 pessoas. Era a vizinhança em peso. Festejavam o carnaval e pretendiam a participação dos forasteiros, de verdade entre atônitos e perplexos.

 

Foi meu primeiro contato com o carnaval nativo, não por acaso motivação da folia, palavra de origem italiana que significa loucura. Meu pai se restabeleceu aos poucos, creio, porém, que o vulnerassem pensamentos sombrios a respeito do país que haveria de se tornar nosso. Com o tempo, o insólito virou corriqueiro e eu mesmo soube como me adaptar à ideia carnaval. Verifiquei, aliás, ligações e reminiscências do tríduo romano, conforme a leitura da viagem à Itália de Goethe. Constatei a origem do termo confete, aplicado às chuvas de miúdos discos de papel multicolorido a enfeitar a festa.

Ocorre que nos desfiles de Via del Corso – daí o nosso corso, inicialmente realizado na Avenida São João, como o conheci – o pessoal das carruagens e a choldra estacionada nas calçadas atiravam uns nos outros verdadeiros confeitos, confetti em italiano, mais tarde substituídos por imitações em giz. A primeira versão era cara: constava de amêndoas secas revestidas por uma camada de açúcar cristalizado.

Lá pelas tantas, o que me parecia insólito tornou-se corriqueiro. Antes disso, meu pai passou por uma crise de catatonia

A minha adaptação à follia nativa foi celebrada ao sabor de razões práticas. Não havia como escapar. Nem todos os meus carnavais foram empolgantes, mas recordo um transcorrido a bordo de um flamante Jaguar, conduzido por um motorista japonês, ocasião em que eu tratava de abraçar das mais variadas formas possíveis uma formosa rapariga, filha dos donos do veículo. Pelas ruas ouvia-se exaltar a aventura de uma Chiquita Bacana lá da Martinica disposta a se cobrir simplesmente com a casca de uma banana nanica.

Em São Paulo… Da Via del Corso, o alegre desfile passa pela Avenida São João.

Recordo outro, à fantasia, capaz de excitar minha mãe e sua irmã ao me imporem os trajes de um marajá, confeccionados com velhas cortinas adamascadas, e um turbante construído penosamente com toalhas de mesa. Ambas estavam de olhos luzidios quando fui à rua em busca de um táxi no ponto instalado em esquina distante.

Pelo caminho o marajá rezava, em implorações exasperadas ao Criador, para não cruzar no caminho com algum companheiro dos domingos de futebol no campo do Corinthinha, dotado de peculiaridade de inclinar-se depois do meio círculo, sem mais nem menos, na direção de um dos gols, para exigir do jogador dotes também de alpinista. Em lugar de encontros sinistros, veio uma chuva torrencial, o dilúvio, que se incumbiu de carregar os trajes principescos, sem excluir o turbante, de sorte que cheguei à casa da festa, mansão na Avenida Paulista a ocupar um quarteirão inteiro, coberto apenas pela calça branca dos desfiles de 7 de Setembro.

Panis et circenses, recomendavam os imperadores romanos para manter o povo quieto. Aqui até o pão escasseia

Nunca me convenceu a ideia da alegria de data marcada, ainda assim vale considerar que o carnaval sobrevive em outros cantos do mundo. No Brasil, entretanto, reveste-se de um significado muito próprio, que faz dele a mais marcante festa nacional. Inegável o poder do evento: por aqui, o ano novo começa apenas depois do carnaval. Em um país que vive em função dele, a esperá-lo por um ano inteiro, juntamente com o futebol, este a levar vantagem por causa da sua periodicidade destinada à alegria, ou à tristeza de tardes talvez ensolaradas e noites de pesadelos. É desse tempo minha aversão à retórica a cercar a manifestação a louvar a malemolência, o ritmo, a graça carnavalesca para transformá-la quase em festa cívica, ouso afirmar.

Onde o carnaval também se manifesta espalham-se as oportunidades de viver de forma muito mais ampla e livre, sem recorrer a fantasias e crenças impossíveis. É desse tempo a minha ojeriza em relação a certas letras de músicas populares. Não falemos de “O teu cabelo não nega, mulata”, contento-me com a referência à “Mangueira, teu cenário é uma beleza”. Visto de que ângulo? Da favela para o panorama carioca? O espetáculo é muito diferente e deprimente, se olharmos para a Mangueira a partir do asfalto dos bairros que lhe ficam aos pés.

Quando moço, lembro das coberturas carnavalescas de O Cruzeiro. Relatavam os bailes dos ricos enfatiotados em seus trajes lustrosos, nos longos de grifes célebres. Smokings, summer jaquets, dinner jaquets, aceitava-se tudo se fosse de bom corte, assim como decotes vertiginosos e inovações da moda de Paris. Aos negros reservavam-se fantasias setecentistas, a evocar a escravidão, para transformar o servo cativo em uma imitação grotesca do patrão. Também por isso o carnaval existe: para acentuar as diferenças, consagradas na distribuição dos camarotes no sambódromo, conquista relativamente recente, que do alto assistem ao espetáculo.

Já no Rio… Ex-escravos vestem-se como os patrões. Foto: Paulo Toscano / Ag. O Dia

Costumava dizer Claudio Abramo que o clima carnavalesco é emoliente. Na folia derrete-se o esquecimento das prepotências, das vexações, da desigualdade, timbradas pelo carnaval. Não há coisa alguma que represente melhor a parvoíce brasileira, a incapacidade de reação popular eficaz, a alegria forçada. A tentativa de encontrar uma válvula de escape. Panis et circenses, recomendavam os imperadores romanos, a fim de manter seu poder e o povo em quietude.

Tenho certeza de que o carnaval foi, lá pelas tantas, uma invenção da casa-grande: não tinha noção da história do antigo império romano, chegara, contudo, às conclusões dos seus estrategistas. É provável que a festa tenha começado na própria casa-grande, mas ali houve quem percebesse a natureza festeira dos escravos. E a certeza não se esgota na percepção do processo ou da inclinação à folia dos ameaçados pela chibata do capataz. Isto sim colhe sua confirmação na incapacidade de reação da senzala.

Não há em um mundo onde faz tempo a Idade Média se encerrou uma tibieza e um conformismo iguais, assim como são únicos na sua desgraça o país e seu carnaval.

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