Justiça

O país do carnaval não é o país da vida

Se, por um lado, a suspensão do Carnaval em Salvador é medida sanitária, por outro, pode conduzir uma parte da população à miserabilidade, à marginalização e ao encarceramento.

Polícia efetua prisão em carnaval de Salvador, Bahia, em 2020. Foto: Paula Fróes/GOVBA
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Em mémoria de Moïse Kabagambe

O Carnaval de Salvador que hoje se conhece surgiu a partir da simples e genial ideia de Dodô e Osmar de instalar alto-falantes no Ford modelo A 1929 para desfilar no Carnaval de 1950. Suplantou o Carnaval no estilo europeu realizado até aquele momento.

Até o final da década de 1940 do século passado, o Carnaval era realizado nos mesmos moldes da Europa, com famílias sentadas em cadeiras em frente às grandes avenidas Sete de Setembro e Rua Chile, por onde passavam o cortejo, que juntava no mesmo lugar pobres e ricos, contudo, a área dos mais ricos estava sempre ao redor de tudo.

Ao se assistir aos filmes antigos, percebe-se a exaltação ao fino e elegante sistema de classe que oferece um Carnaval elegante e Europeu (História do Trio Elétrico). Era uma tradição basicamente francesa em que a braquitude baiana se permitia dançar nas ruas e, alternativamente, em clubes fechados.

Já em 1942, Benedito Chaves se apresentou em Salvador com um instrumento estridente, o qual, em verdade, era um violão com um captador inserido à sua boca, que contudo gerava microfonia bastante desagradável. Essa inovação não passou batida por Dodô e Osmar, os quais passaram a tentar resolver esse problema, o que deu origem tempo depois ao famoso pau elétrico, que se dera pela exclusão da caixa do violão.

Porém, somente entre 1949 e 1950 o pau elétrico encontrou o Ford 1926 para formar a dobradinha imbatível: o trio elétrico que trouxe os mais pobres e uma classe média para o Carnaval de rua de Salvador nos bairros nobres, e assim os mais humildes passaram a dominar a rua nesses dias.

Não é à toa que o processo de redemocratização do país (1945-1964) parece dar fôlego a laivos de participação popular com os desvalidos/empobrecidos tomando as ruas nessas oportunidades. O Carnaval também seria uma oportunidade para tais manifestações, inclusive com caráter de sátira política, usado para manifestar as diversas insatisfações quanto ao cenário político local e nacional.

O Carnaval antecipou tendências. Jogou com o lúdico do real e realizou a brincadeira de uma sociedade sem seriedade para olhar seus problemas.

Portanto, o Carnaval de Salvador, a partir da década de 1950, oscila, nas palavras de Franco e Leão (2019), entre uma ruptura com os padrões operativos de uma sociedade e com a ordem vigente, para Da Matta (1997), ou endossante da lógica vigente, tais como: o enaltecimento do trabalho e o disciplinamento dos estratos populares operado pelas escolas de samba (QUEIROZ, 1992).

Não preciso tomar partido de qualquer das ideias, pois me parecem ambas acertadas. No Carnaval de Salvador há um contrato tácito que reproduz a ideia de exercício de liberdades (permitindo na seara dos costumes alguma transgressão), contudo uma visão escravista e retrógrada sempre ronda e sonda a alma dos baianos como lobos que tentam, mais que comer a carne negra, estraçalhá-la, com todo ódio que habita no coração dos algozes.

A carne mais barata do mercado é a carne negra, já cantou a saudosa Elza Soares em espetacular interpretação da composição “A carne”, de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti, que lá pelas tantas ecoa:

Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
Que vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos

E é nessa lógica que a cidade com a maior população negra fora da África tornou o Carnaval uma forma, entre outras coisas, de exploração da carne negra. Se, por um lado, os grandes blocos dos grandes grupos econômicos que passam a explorar os trios elétricos são reservados para pessoas brancas enquanto excluem o resto da população, de outro, quem assume os lugares de seguranças dessas divisões nas décadas de 1980 e 1990 são homens e mulheres negras chamados de cordeiros, que com suas mãos calejadas e malferidas seguram cordas que ao final de uma semana as deixam num único nó.

Trabalho que em muito se assemelhava com as atividades da escravidão –  sem segurança social, penoso e desvalorizado, tal trabalho só era um pouco pior que os de ambulantes, que, entre outras situações, juntavam no mesmo espaço mães, pais e prole (estes últimos por não ter onde ficar) para trabalhar, sem descanso em festas de Carnaval na Roma negra, sem sequer ter espaços privados em que pudessem fazer dignamente necessidades do corpo, contando somente com a solidariedade uns dos outros.

Como efeito dessa atividade sazonal, precarizada, mas que auferia episodicamente oportunidades para um público muitas vezes alijado de outras formas de ganho, o pós-carnaval revelava a surpresa do aumento da permanência das pessoas na cidade e o aumento da desigualdade (aumento da mão de obra com baixa instrução e pouca ou nenhuma política de incorporação dessa população). Então, nos idos da década de 1980, na cidade que ostenta o título da capital do desemprego, o Carnaval se amplia de três para sete dias, com a justificativa de tornar os pequenos ganhos ainda maiores para aqueles ambulantes e pequenos e médios empresários, ao se dar visibilidade à festa e aumentar o trade turístico.

Foto: Amanda Oliveira/GOVBA

O ensino público só se universaliza no final da década de 1980 com a Constituição de 1988 e o acesso aos cargos públicos só se torna por concurso público no mesmo período. Na época, existem basicamente duas universidades públicas em Salvador, e ao contrário de outras capitais com royalties de petróleo, ou herdeiras de processo de industrialização e de um nascente setor de serviços (bancos, tecnologias …), Salvador é uma cidade com mais de dois milhões de habitantes tão pobres como em outras capitais, contudo sem os recursos para lidar com a crescente favelização da cidade.

Ante a esse contexto pródigo em problemas e escasso em soluções, a ampliação do Carnaval de Salvados acabou virando parte de uma condição para aumentar os ganhos do trabalhador, forma bastante discutível, uma vez que os próprios resultados podem falar por si. O cenário cultural do Carnaval criou, todavia, a possibilidade de existência de grupos culturais que se notabilizam por uma existência festiva nesse período, mas grande capacidade de articular demandas redistributivas e de reconhecimento.

Afoxés como Ilê Ayê e filhos de Gandhy, ou mesmo grupos de músicas como Araketu, representam espaços de luta e proposição de novas formas de olhar o homem e a mulher negra no cenário local, ainda que desde sempre sejam pouco centrais na estrutura midiático-econômica da indústria do entretenimento de Salvador, recebendo poucos recursos.

Suas lutas rendem nos bairros em que se encontram oportunidades para os jovens (negros e negras periféricos), além de representarem uma inovação estética fundamental para a cidade. Aquilo que Pinho (2018) vai chamar de reafricanização.

Esse processo é normal para uma cidade em que, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do IBGE, realizada em 2017, 8 em cada 10 moradores de Salvador se autodeclaravam negros ou negras, ou seja, cor preta ou parda. Os negros (pretos + pardos) somavam 2,425 milhões, ou 82,1% das 2,954 milhões de pessoas que viviam na cidade naquele ano. Por isso mesmo, além de capital da Bahia, Salvador tem o posto de capital negra do país.

 

Nada do que foi dito é um processo de valor, mas de reconhecimento do factual/narrativo que a história do povo negro revisita. Contudo, ainda empobrecidos, o cidadão e a cidadã negros, mais conscientes de sua expressão no cenário econômico local e do alto nível de sua exploração, ainda não têm acesso a bens e serviços; anos da social democracia no Brasil, com os governos de estabilização econômica e de redistribuição de renda mínima, não foram suficientes para mudar plenamente o padrão de subemprego da população de Salvador, que, em certa medida, ainda depende do Carnaval para completar renda nas suas diversas atividades, tendo em vista que esse evento tem papel central na vida desses homens e mulheres.

Para essa população o Carnaval é o momento que possibilita ganhos que, bem administrados durante o ano, permitem uma melhor sobrevivência, por isso sua suspensão é tão problemática e complexa.

Em artigo intitulado “Negro drama: um olhar sobre Salvador nesses tempos de pandemia Covid -19”, publicado na obra coletiva Na saúde e na doença. História, crises e epidemias: reflexões da história econômica na época da Covid-19, o articulista Silvio Humberto Passos da Cunha (2020) faz um panorama sobre outros momentos em que a cidade padeceu de outros males oriundos de epidemias em paralelo com a pandemia atual. A princípio, ele descreve o seguinte cenário considerando o processo de desindustrialização de Salvador:

O setor industrial da cidade encolheu e Salvador tornou-se uma metrópole de serviços, com destaque para os serviços vinculados ao turismo, às atividades financeiras e ao comércio, que resultou, em 2017, em 63 bilhões de reais, posicionando-se como a 1.ª economia do nordeste e 9.º maior PIB entre as cidades brasileiras. Entretanto, quando calculado o PIB per capita, a cidade cai para a 2106.ª posição no ranking. (CUNHA, 2020, p. 109).

Qual é a explicação para uma queda tão abrupta no ranking da economia nacional, quando as pessoas entram em cena? Pergunta Cunha (2020). Ele aponta para o caráter multidimensional da pobreza. E volta-se à seguinte questão: quando o Brasil enfrentou a epidemia da gripe espanhola, em 1918, aqui na Bahia governava J. J. Seabra, que, implementando as reformas e alargamentos de avenidas, pôs em marcha a retirada de pessoas das ruas, as quais, por sinal, com o fim da escravidão, encontravam nas ruas um dos poucos lugares de acolhimento.

Com isso, muitos foram afastados do centro e passaram a ter dificuldades para obter meios de ganhos e sobrevivência. Assim, também naquela época, o enfretamento da calamidade se deu às custas do maior empobrecimento dos já muito pobres.

O Ilê Aiyê, ou Ilê, é o primeiro bloco afro do Brasil e se consolidou como uma das expressões culturais do Carnaval de Salvador.
Foto: Carol Garcia/GOVBA

Isso se repete aqui, em Salvador. Apesar da melhoria nas condições identitárias e da formação com ampliação de acesso ao ensino técnico e superior, com a reafricanização e as propostas emancipatórias representadas por movimentos de mulheres negras (CUNHA, 2020), Salvador ainda é uma capital com uma população empobrecida, portanto o fato de a Covid-19 impor sacrifícios pesa ainda mais para nosso povo.

Se, por um lado, a suspensão do Carnaval é medida sanitária, por outra, pode conduzir uma parte da população à miserabilidade, à marginalização e ao encarceramento (ainda maior do que o que há).

Impõe-se pensar, ante as perdas de renda e oportunidades constantes dos mais pobres nos últimos anos, não só em medidas que permitam a sua sobrevivência representadas pela renda cidadã (art. 6º da CF), mas também em um grande acordo nacional antirracista que promova redistribuição e renda para os mais pobres e principalmente aos pretos e pretas.

Isso deve se dar por mecanismos de transferências que permitam rápido acesso a recursos para pequenos negócios nas três esferas de governança e mecanismos conjuntos de proteção. Estes dois últimos instrumento de política voltados em particular para pessoas pretas e pretos essencialmente, utilizando a nossa já solida experiência com a identificação desses grupos.

A covid-19 só atinge de forma desigual (e o faz aos homens e mulheres pretos mais que a outros grupos) aqueles que vivem em condições desiguais. Deve-se reconhecer de logo os problemas da pobreza e da desigualdade, que cobram seu preço a todos, ainda que mais tarde aos brancos, e entre esses os brancos endinheirados.

 

A suspensão do Carnaval é medida sanitária que se impõe, contudo ela torna um povo já muito empobrecido paupérrimo, o que demanda políticas públicas de segurança alimentar, porque o Carnaval constituiu, durante as duas últimas décadas do século passado e as duas iniciais deste, num importante mecanismo de renda para as populações pobres e, portanto, dos negros e negras (é triste perceber que boa parte das quituteiras do antigo comércio do século XIX se tornaram as vendedoras dos séculos XX e XXI); sem Momo essa pequena renda se evapora, e até cidades do interior do estado que faziam pequenas festas, como micaretas e outras folias, sentiram o impacto.

Então, o desafio não pode ser apenas uma política de renda mínima ou ainda uma simples garantia de três refeições. É preciso uma política de acesso aos negros e negras que os incorpore de pé no sistema de produção, não apenas que os rasteje pelo consumo.

Nesse sentido, uma política de acesso aos meios de crédito com taxas de juros diferenciadas, sistemas de poupança e fomento que assegurem a produção e a vantagem na aquisição de compras para a população local em Salvador, bem como a criação de assistência técnica para negócios de economia na cidade podem assegurar a sobrevivência agora e em outras circunstâncias, e assim permitir que o Carnaval seja um negócio (mas que a sobrevivência não esteja à mercê de uma festa ainda que tão rica em símbolos) bom também para os negros e negras, tornando a vida possível.

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