Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

O mercador de sorrisos: um livro sobre o que não se pode vender ou comprar

Trata-se de uma obra bela e profunda, que deveria estar nas salas de aula de todo o Brasil, escreve Luana Tolentino

Créditos: divulgação
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Sou formada em História. Desse modo, toda minha experiência como professora da Educação Básica se deu em turmas dos ensinos Fundamental II e Médio. Recentemente, passei a olhar com mais atenção o universo da Educação Infantil, uma vez que tenho me dedicado à Formação Inicial e Continuada de Professores.

 

Sempre que falo sobre racismo e infância, busco chamar atenção para o que a pesquisadora Eliane Cavalleiro chamou de “apedrejamento moral”: conjunto de violências físicas e simbólicas que meninos e meninas negras têm sofrido cotidianamente nos espaços escolares.

Além disso, ao fazer esse movimento, entro em contato com a Luana menina, também vitimada por essas violências. Hoje me sinto mais capaz de segurar a mão dela, como ela sempre sonhou que alguém segurasse.

Ao refletir sobre esse segmento educacional, me aproximo da Literatura Afro-brasileira Infantil e Juvenil, ferramenta importante no combate à discriminação e aos estereótipos que depreciam a comunidade negra.

Embora a Lei 10.639/03 tenha tornado obrigatório o ensino da História e da Cultura Africana e Afro-brasileira em sala de aula, o acesso às primeiras letras ainda se dá, sobretudo, por meio de clássicos como Rapunzel, Cinderela, A Bela Adormecida, A Bela e a Fera e tantos outros, marcados por suas narrativas que exaltam a brancura como único referencial de conhecimento e beleza, o que dilacera a autoestima das crianças negras.

Nesse sentido, oportunizar a elas e aos demais grupos étnicos o acesso a enredos que apresentam personagens negros de maneira positiva, além de ser um direito, contribui de maneira inenarrável para a formação de cidadãos orgulhosos de sua pertença racial, como também para o reconhecimento e valorização da diversidade existente em nosso país. Não custa nada repetir: representatividade importa.

Há alguns dias, recebi O mercador de sorrisos, livro do escritor afro-mineiro Édimo de Almeida Pereira. Publicado em 2019 pela editora Paulus, tem como alvo o público infantil, porém, antes de qualquer coisa, é preciso ressaltar que é uma obra para todas as faixas etárias. Ao longo de trinta e uma páginas, o autor tece um registro sensível a respeito de uma das questões mais caras do nosso tempo: a busca pela felicidade.

Ambientada em uma aldeia, a história é contada embaixo de uma figueira pela velha Oyagbami, cuja memória guarda a chegada de um mascate, que levava consigo uma “grande arca abarrotada de sorrisos”, comercializados em troca de objetos carregados de valor sentimental.

Segundo a griot, denominação dada na África Antiga a quem tem a vocação para preservar e transmitir histórias e conhecimentos de seu povo, o negócio despertou o interesse de todos: “As trocas ocorreram com muitas outras pessoas, fazendo com que a fama do mercador de sorrisos se espalhasse por toda a aldeia e ainda pela vizinhança. Muita gente passou a procurar o mercador, portando seus pertences mais preciosos, a fim de trocá-los por uma sorriso” – disse a matriarca.

Contudo, a sensação de bem-estar era passageira. Em muitos casos, os sorrisos logo davam lugar a aflições e angústias. Não demorou muito para que o mercador fosse embora, vindo outro em seu lugar, que em troca de sorrisos, distribuía lentes e espelhos, com os quais os aldeões podiam olhar para o íntimo e perceber o que guardavam na alma. Tem-se então um dos momentos mais profundos da história: “De imediato enxergavam que, apesar de todos estarem sorrindo, existia bem dentro de cada pessoa uma melancolia ou outra ou uma tristeza qualquer”.

Com o fim das lentes e dos espelhos, o mascate deixou a aldeia, e nela, toda gente tomada por reflexões e tristezas. Assim permaneceram, até que chegou um último mercador, que ao oferecer porções de esperança, pedia apenas que as pessoas contassem histórias. Desse modo, “as dores mais secretas de cada pessoa se dissiparam”.

Confesso que, após a leitura de Mercadores de sorrisos, senti e vi espairecerem algumas angústias que o momento presente tem me trazido. Talvez esse seja o ponto alto do livro: a autoria, as ilustrações de Denise Nascimento e os personagens negros o colocam na galeria de produções literárias afro-brasileiras, porém, Édimo de Almeida Pereira toca fundo em uma questão universal – a comercialização da felicidade, bem que não se pode vender ou comprar.

Pensando nas crianças, expostas precocemente à mercantilização de sorrisos e ao consumo, a história contada pela velha Oyagbami ensina sobre a importância de perceber a felicidade nas coisas miúdas, cotidianas. A narrativa traz ainda a percepção de que perdas, tristezas e decepções fazem parte da vida.

Trata-se de um livro belo e profundo, que deveria estar nas salas de aula de todo o Brasil. Um livro para mim, para você, para as crianças: assim defino a obra de Édimo de Almeida Pereira.

Na semana passada, dediquei minha coluna a Pepe Mujica e Ailton Krenak, que há muito vêm denunciando os abismos criados por essa busca desenfreada pela felicidade. Mercador de sorrisos é um livro para eles também.

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