Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Luana Tolentino: Ailton Krenak, Pepe Mujica e o desastre do nosso tempo

‘O que levo do meu encontro com duas das vozes mais lúcidas e importantes da contemporaneidade’

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado e Adriana Moura/Facebook Ailton Krenak Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado e Adriana Moura/Facebook Ailton Krenak
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Sou incapaz de dizer o que significa para mim ter conhecido Pepe Mujica e Ailton Krenak, duas das vozes mais lúcidas e importantes da contemporaneidade. Estive com o ex-presidente uruguaio em abril de 2016, quando recebi a Medalha da Inconfidência, maior honraria concedida pelo Governo do Estado de Minas Gerais. Quando soube que a homenagem também seria entregue ao Mujica, entrei em uma espécie de transe, num estado febril que durou 15 dias.

Durante o nosso encontro, não disse uma só palavra. O problema não foi o meu desconhecimento da língua espanhola, mas a minha incapacidade de dizer algo para uma pessoa tão rica e cheia de luz. Sorri e ele sorriu de volta. Apontei o dedo para a câmera do meu celular. Ele entendeu que eu queria uma foto para eternizar aquele momento. Tremi quando ele segurou minha mão para que a selfie saísse da melhor maneira possível.

Em fevereiro deste ano, pouco antes da peste chegar, tive o privilégio de conhecer Ailton Krenak, que esteve em Belo Horizonte para o lançamento de “Ideias para adiar o fim do mundo”. Foi um dia iluminado. Em todos os sentidos. Muito sol, música e livraria lotada. Fiquei comovida com a cena. Pensei: em um país que há mais de 500 anos extermina os povos indígenas e despreza o conhecimento, ver tanta gente celebrando a vida e a obra do Krenak é um verdadeiro presente.

Fiquei um pouco ansiosa. Aflita. A fila era tão grande que temi não conseguir um autógrafo. Krenak estava sentado, mas se levantou para falar comigo. Fiquei paralisada. Estática. Olhando no fundo dos meus olhos, contou da participação dele na Constituinte de 1987, da elaboração da Constituição de 1988. Falou em resistência. Comentou sobre algumas passagens do livro. Enquanto conversávamos, a fila ficava ainda maior, o que me trouxe certa preocupação. Preciso aprender com ele. O tempo dos indígenas é muito diferente do nosso. Nós nos despedimos, mas como não poderia deixar de ser, o encontro do dia 8 de fevereiro de 2020 permanece vivo em mim.

Nessa semana em que o processo de ruptura institucional ganhou contornos ainda mais graves, busquei entendimento nos ensinamentos de Pepe Mujica e de Ailton Krenak. Reli entrevistas, procurei outras que não tinha lido ainda. Vi vídeos. Não tive coragem de rever “Uma noite de 12 anos”, filme que narra o período de encarceramento de Mujica. Já havia assistido no cinema. Chorei demais. Não quis repetir a dose. Folheei “Ideias para adiar o fim do mundo” e li pela primeira vez “O mundo não está à venda”, ambos do líder indígena do Vale do Rio Doce.

Em 2016, Pepe Mujica ressaltou o pouco apreço dos brasileiros pelas políticas públicas, ao passo que valorizam gestos de “caridade”. Tal afirmação ajuda a compreender a ascensão da deputada federal Flordelis, acusada de ser a mentora do assassinato do filho, ex-genro e marido, o pastor Anderson Gomes, executado com 30 tiros.

Durante muitos anos, Flordelis, com sua imagem de mulher caridosa que adotou 55 crianças, foi presença constante em programas de televisão que costumam explorar a miséria alheia e defender a meritocracia. Com isso, jamais foi discutido o fato de o Estado ter falhado ao não dar condições às famílias de permanecerem com seus filhos. Quando o caso veio à tona, ficou provado que os órgãos de proteção falharam também ao permitirem que crianças e adolescentes ficassem sob a guarda da cantora gospel sem que os mecanismos legais de adoção fossem cumpridos.

Ao refletir sobre os limites das políticas de distribuição de renda promovida pelos governos de esquerda da América Latina, Mujica foi taxativo: “Temos muita gente com fome, sem abrigo ou com casas miseráveis, e conseguimos, até certo ponto, ajudar essa gente a se tornar bons consumidores. Mas não conseguimos transformá-los em cidadãos”. Essa assertiva ajuda a compreender também o apoio de membros dos setores mais empobrecidos a políticos que cumprem uma agenda marcada pela retirada de direitos e precarização da classe trabalhadora. Pepe Mujica lembra que “os processos são lentos demais”, o que mostra que levará bastante tempo para que consigamos sair do abismo no qual fomos jogados.

Nas primeiras páginas de “Ideias para adiar o fim do mundo”, Ailton Krenak faz o seguinte questionamento: “Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do exercício do ser?”. Pensando na realidade brasileira, com a pandemia, a desumanização da maioria da população ficou ainda mais evidente. Pretos, pobres e indígenas estão sendo alijados do direito básico de respirar, conforme pontuou o filósofo camaronês Achille Mbembe.

Do total de óbitos decorrentes da Covid-19 registrados até julho, 55% das vítimas eram negras. O racismo estrutural incide também no acesso ao mercado de trabalho. Segundo dados do IBGE, 64% dos desempregados do país são negros.

Sobre os ataques constantes aos povos e às terras indígenas, o professor Honoris Causa da Universidade Federal de Juiz de Fora pontua sobre a incapacidade de os brancos de conviverem com as diferenças, com a existência de grupos que não se renderam à propriedade privada, à escravização, e a concepção de que o único sentido da vida é o lucro. Em razão disso, ofendem, perseguem, mentem, fazem da ameaça e do extermínio uma política de Estado.

Filhos de realidades e de tempos distintos, Mujica e Krenak são taxativos ao afirmar que o modelo de sociedade na qual estamos inseridos, baseada na exploração, no lucro das grandes corporações, no consumo, na destruição da natureza e no genocídio dos negros e dos povos tradicionais está fadado ao fracasso. Nesse sistema predatório, todos nós estamos ficando órfãos.

Estamos vivendo “o desastre do nosso tempo”, disse Ailton Krenak. Apesar de tudo, consigo ver alguma saída, ainda que a longo prazo. Talvez por agarrar-me no exemplo e nas palavras dos dois. Pepe Mujica pontuou: “A vida me ensinou algumas coisas. Os únicos derrotados são os que deixam de lutar. Mas vocês têm de saber que não há um prêmio no final do caminho. O prêmio é o caminho mesmo, é o andar mesmo. Nossa luta é muito velha. São falsos os términos.

Sobre a luta dos povos indígenas, Krenak, escreveu: “Tem 500 anos que os índios estão resistindo (…) A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras, que falam mais de 150 línguas e dialetos”.

Sorte a minha conhecer esses dois.

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