Maria José Rigotti Borges

[email protected]

Juíza do Trabalho da 10ª Região. Mestre em Sociologia e doutoranda pela Universidade de Coimbra.

Opinião

O medieval universo de Zita e as domésticas

Estamos falando de um expressivo contingente de trabalhadores, sendo 92% mulheres, a maioria negras, de baixa escolaridade, oriundas de famílias pobres e baixa remuneração

Créditos: EBC
Apoie Siga-nos no

Pensemos em Zita. Ela nasceu em uma família pobre e com muitos filhos. O que se tem de registro é que, ainda criança, aos 12 anos, foi levada para trabalhar como doméstica na casa de uma família rica e nobre. No medieval universo de Zita, ela recebia apenas comida e vestimenta. Limpar, lavar, cozinhar consumiam seus intermináveis dias e praticamente todos os tempos de sua vida, incluindo aqueles que seriam de descanso. Não são encontrados registros dos mecanismos de insurgência no universo de Zita, mas se sabe que foi maltratada, vilipendiada, assediada, subumanizada, silenciada, permanecendo nesta condição por 48 anos, até a sua morte.

A vida de Zita não aconteceu no Brasil. Aqui não nasceu ou viveu.

Zita não vivenciou o nosso passado de escravismo colonial na modernidade, cujo sistema perdurou por quase quatro séculos, neste que foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Esse sistema foi forjado pelo que Achille Mbembe denominou de “espoliação organizada” de homens e mulheres originários de África, transformados em objeto, mercadoria e moeda por uma organização racional de desumanização de corpos negros.

A uma grande parcela das mulheres negras escravizadas foi destinado o lugar dos espaços de servidão na “casa-grande”, como mucamas e amas de leite, chamadas de “mãe preta”. Eram escravizadas domésticas de “porta adentro”, expostas a muitas formas específicas de violências, como ataques sexuais, castigos, incluindo para as amas de leite a crueldade da restrição ao exercício da maternidade.

Também não foi o tempo e lugar de Zita testemunhar a formalização do fim do sistema escravocrata, no final do século XIX, e as políticas de limitações de acesso a todas as dimensões de cidadania para os(as) trabalhadores(as) ex-escravizados(as) e seus descendentes.

Nesse tempo do pós-abolição, ou denominado de abolição inconclusa, para grande parte das mulheres negras, os valores e práticas escravistas foram perpetuados nas rotinas como trabalhadoras domésticas em condições precárias e violentas, remanescendo o lugar de servidão.

Zita não presenciou as conquistas dos trabalhadores e das trabalhadoras por direitos trabalhistas por meio de árduas lutas no processo brasileiro de industrialização, a partir das décadas de 1930 e 1940.

Não viu o paradoxal contraponto em relação às trabalhadoras domésticas, que permaneceram absolutamente invisibilizadas, excluídas de qualquer proteção jurídico-trabalhista na CLT de 1943, principal legislação de expansão protetiva trabalhista no país. As domésticas sequer tinham direitos mínimos básicos, como à carteira de trabalho, limitação de jornada, salário mínimo e direitos previdenciários.

Somente após 30 anos, em 1972, foi editada a Lei do Trabalho Doméstico, estendendo alguns poucos direitos à categoria.

Nem mesmo a chamada “Constituição cidadã” de 1988 representou a concretização da cidadania para essa categoria. Os direitos somente foram efetivamente ampliados com a PEC 72/2013 e a Lei Complementar n. 150/2015. E, ainda assim, remanesceram incompletudes legislativas, discriminações e invisibilidades. Ainda hoje, 75% trabalha na informalidade, sem registro na carteira de trabalho. A própria lei assim permite, caso das diaristas que trabalham até dois dias na semana na residência. Há também os casos de fraude trabalhista na prática cultural disseminada de “não assinar a carteira” da trabalhadora quando assim deveria se proceder.

Estamos falando de um expressivo contingente de trabalhadores, sendo 92% mulheres, a maioria negras, de baixa escolaridade, oriundas de famílias pobres e baixa remuneração. É categoria que impacta expressivamente o mercado de trabalho e a sociedade, sendo a maior categoria ocupacional para as mulheres trabalhadoras no país, em torno de 4,5 milhões de mulheres (IBGE, 2021).

São muito distantes do tempo de Zita os desafios do século XXI na 4ª Revolução Industrial, Indústria 4.0, inteligência artificial e afins. E ela não viu a contemporaneidade ainda coabitar na sociedade brasileira com a existência de prestação de trabalho doméstico em condições análogas à escravidão. Perplexidades de casos, como o de uma mulher negra que começou a trabalhar aos 13 anos de idade e foi mantida por 50 anos nessa condição, em Santos. Ou mesmo o comovente caso de Madalena, resgatada em 2020, que começou a trabalhar aos oito anos de idade para uma família rica de Patos de Minas, em Minas Gerais, vivendo em reclusão e sob vigilância dos patrões por mais de 30 anos. E a vergonhosa lista de casos continua.

Zita também não constatou histórias de lutas  contínuas e resistências,  como o emblemático ativismo de Laudelina de Campos Mello, nascida em 1904, doméstica desde os 7 anos de idade. Atuante em movimentos populares, Laudelina fundou em 1936 a primeira Associação de Trabalhadores Domésticos do país, que foi fechada pelo Estado Novo e reaberta em 1946, somente se tornando Sindicato em 1988, além de ter fundado o Sindicato das Domésticas de Campinas. Podemos citar inúmeras outras referências, como Lenira Carvalho, liderança em movimento político e popular por moradia e na criação do movimento sindical das trabalhadoras em Recife, Odete Conceição no Rio de Janeiro, Creuza Maria Oliveira na Bahia, atualmente Luiza Batista, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas.

Lembremos dos marcos de árduas lutas políticas dessas trabalhadoras, como a participação na “Carta das Mulheres aos Constituintes”, a articulação em nível internacional no âmbito da OIT através CONLACTRAHO (Confederação Latino Americana e do Caribe de Trabalhadoras Domésticas em português, Confederación Latinoamericana y del Caribe de Trabajadoras del Hogar em espanhol), que resultou na aprovação da  Convenção sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos nº 189, acompanhada da Recomendação nº 201.

Não faltam referências de lutas dessas trabalhadoras.

É sintomático dos apagamentos que aqui ocorrem nenhum destes nomes ou fatos tenham servido a gravar simbolicamente o Dia Nacional das Trabalhadoras Domésticas.

O simbolismo escolhido foi Zita. Consta que ela nasceu na Itália, no pequeno povoado chamado Monsagrati e morreu em Lucca, em 27 de abril de 1278. Quatro séculos depois foi canonizada pela Igreja Católica pela qual é descrita exaltando-se aspectos de doçura, modéstia, dedicação ao trabalho, aos pobres e doentes, mesmo com todos os tipos de maus-tratos que lhe eram infringidos. Santa Zita é considerada pela religião como padroeira das domésticas.

Pensemos no persistente mito da democracia racial e a escolha da data e reflitamos a respeito das justificativas do Projeto de Lei para a data (PL n. 5.115-B, de 2009, conforme site da Câmara dos Deputados): “o dia 27 de abril é comemorado por ser uma data dedicada à padroeira das domésticas, Santa Zita, moça humilde e generosa que costumava dividir sua comida e suas roupas com os pobres”.

Que possamos moldar esta data no presente para não emudecer o nosso passado!

Que esta data sirva para visibilizar as intersecções de opressões vivenciadas no cotidiano dessas trabalhadoras. Lancemos um olhar sobre a temporalidade e perenidade das bases ideológicas históricas patriarcais/coloniais/escravocratas que ainda se fazem presentes no tecido social brasileiro, nos formatos de classismo, sexismo e racismo.

Que esta data nos permita, antes de tudo, refletir sobre a importância do trabalho por elas desempenhado para as famílias e sociedade, e que isso se materialize no agora em efetiva valorização, respeito, dignidade e direitos!

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar