Roberto Amaral

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Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle)

Opinião

O legado do golpe de 1º de abril

O que o novo regime, o bolsonarismo e a corporação militar pretendem comemorar no dia 31?

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Joaquim Nabuco lembrava que o câncer de nossa formação não era a escravidão, como fenômeno em si, mas seu legado. O mesmo se aplica à ditadura militar: a tragédia é sua obra, viva e daninha, que se manifesta na emergência de uma nova ordem autoritária, uma vez mais hegemonizada pela corporação militar. O bolsonarismo, uma patologia, é, a um só tempo, um fruto dos 21 anos da ditadura e a expressão mais visível da sobrevivência dos piores valores do projeto militar. Denunciar esse legado é a tarefa requerida pelos 55 anos do golpe.

O autoritarismo renova o guarda-roupa, varia de estilo e métodos; sua natureza, todavia, permanece inalterada e pouco relevante é a forma de sua implantação, seja o modelo clássico do golpe de Estado com ruptura da ordem constitucional, seja o do golpe dentro das regras do sistema legal, seja mesmo o modelo que emerge do processo eleitoral.

A origem do atual regime – a eleição de Bolsonaro –, assim,  não mascara seu projeto, nem o compromete com o processo democrático. O regime que alçou ao poder na garupa do capitão pode, preservando seus valores, jogar ao mar as peças que entrem em desgaste ou ameacem, por desacerto, o bom funcionamento da máquina, ainda quando a engrenagem avariada venha a ser o próprio presidente. Como pode, até para preservar o capitão, ou amanhã o general em permanente vilegiatura, levar o autoritarismo a cume hoje imprevisível.

A deposição de Dilma Rousseff representou apenas a ponta de imenso iceberg, que, exposto de corpo inteiro, como está, revela  o golpe dentro do golpe, com ou sem Bolsonaro, com ou sem Mourão, com este preferentemente, ou apesar de ambos, pois o projeto imediato da corporação militar, exército à frente, é conservar o mando readquirido e, se possível, aprofunda-lo para assim melhor conservá-lo.

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O que será essa nova fase não é possível antecipar, mas, independentemente de seu prumo e quaisquer que sejam os métodos, a busca pelo Estado forte será o azimute, decisivo que é para a sustentação de um programa de governo dependente da desnacionalização da economia, da concentração de renda, da redução dos direitos dos trabalhadores em geral e dos  aposentados de forma especial, punindo os mais pobres e protegendo os mais afortunados como os militares superiores, de par com a renúncia a qualquer veleidade de soberania nacional e projeto de desenvolvimento com inclusão social. Como se operará essa transição, se requererá trauma ou não, é tarefa de pitonisas. Sabe-se, porém, pelo ensino das últimas décadas, que os interesses sempre se conformam em transações jurídicas guiadas pelos intelectuais orgânicos do sistema, as quais transações, alterando o âmago do poder, mantêm intactas as aparências  do poder, até porque é mediante sua flexibilidade que a ordem legal evita a própria ruptura. Porque o estado policial e repressivo, e ideologicamente protofascista, como estamos conhecendo, pode implantar-se e reger-se no regime de direito e legalidade.

Em 1955, com os bons propósitos de garantir a posse de Juscelino Kubitscheck, ameaçada pela iminência de golpe gestado dentro do governo, o Congresso declarou tanto o presidente Café Filho, quanto seu vice, o deputado Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados, impedidos de exercer a presidência da República. Essa decisão esdrúxula, desconhecida pelo direito constitucional brasileiro, seria posteriormente sancionada pelo STF. Como se vê, o Tribunal de hoje – que homologa a impunidade dos torturadores e assassinos do regime militar – não é muito diferente daquele de ontem.

Na crise da renúncia de Jânio (1961), os militares, derrotados na tentativa de impedir a posse do vice-presidente constitucional, exigida pela resistência popular, concertaram com o Congresso a fórmula de um  parlamentarismo de fantasia, mediante o que foi assegurada a posse do vice-presidente João Goulart, retirados dele, porém,  os poderes inerentes às regras do presidencialismo, sob as quais havia sido eleito. Tudo, como se vê, dentro dos chamados ‘limites da lei’ e da Constituição convenientemente reformada. A crise de governabilidade de 2016 foi arranjada com a construção de um impeachment sem amparo constitucional, observadas, porém,  as regras legais e regimentais que presidem o processo levado  a cabo pelo Congresso e legitimado pelo STF, que igualmente legitimara os golpes de 1955 e 1961 e 1964, ao qual aderiu na primeira hora.

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Esses fatos vêm à baila para,  uma vez mais, pôr de manifesto que os golpes de Estado não carecem de tropas nas ruas  para ser levados a cabo (basta saber que estão aquarteladas), como não dependem de ação de fora para dentro do governo, uma vez que podem ser consumados pelo próprio governo, como operou Getúlio Vargas (com a ajuda dos militares, presentes  em todas ações golpistas vividas pelo país) na revogação da Constituição de 1934 e consequente implantação, em 1937, da ditadura do Estado Novo.

Não há hoje um só analista, seja cientista político seja historiador alfabetizado, que não registre como golpe de Estado a deposição de Getúlio Vargas em 1954, da qual seu suicídio foi apenas um desdobramento. Também nesta hipótese não ocorreu qualquer ruptura da legalidade, se não considerarmos como crime a insubordinação de militares contra seu comandante e chefe, o presidente da República.

Os golpes de Estado, em qualquer de suas múltiplas e sempre inovadoras modalidades, porém, carecem de um mínimo de preparação da opinião pública mediante quase sempre a fabricação de um clima de desassossego social. Em 1937 Vargas apoiou-se na revelação de um falso plano comunista de tomada do poder. Quando a farsa se revelou a democracia já havia sido revogada, e seu autor, oficial a serviço do estado-maior do exército, ao invés de ser punido, fez carreira na corporação e, general, foi o espoleta do golpe de 64 comandando as insubordinadas tropas de Juiz de Fora.

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Jânio Quadros, na preparação do golpe frustrado que intentava perpetrar com a renúncia efetivada, cuidou de previamente conflitar-se com o Congresso, com os  partidos e a imprensa, demonizar a política e os políticos, confundir aliados e a opinião pública, e, naquela que certamente era sua tática fundamental, logrou, em nome do combate à corrupção, tema de sua campanha eleitoral, dividir o país em apenas duas categorias de brasileiros, irreconciliáveis e incompatíveis como água e óleo, de um lado os virtuosos e de outro os desonestos, de um lado os corruptos e de outro os caçadores de corruptos.

Os atos e fatos do governo de agora – e não apenas do capitão, de sua famiglia e do astrólogo, uma unidade de pensamento e ação – não revelam apenas incompetência, mas também método astucioso. Não se deve receber como mero acaso o permanente investimento no desassossego social, no confronto entre as instituições e entre os Poderes, no descrédito da ‘classe política’ de que sabidamente depende; não é mera estultice a denúncia diária da imprensa que alimentou sua ascensão. Investe no conflito sem freios e no proselitismo da violência quando a sociedade já vive intranquila, ameaçada pela recessão, a estagnação do PIB, o vai e vem da bolsa, o sobe e desce do dólar, o descalabro da educação, o desemprego, a violência crescente, a miséria endêmica, e, finalmente e coroamento de tudo isso,  vivendo a amargura da descrença em qualquer perspectiva de futuro.

O processo de nossos dias é a decantação de uma história que vem de longe, porque os valores da ditadura militar não foram combatidos, o autoritarismo,  a ela inerente como seu DNA, não foi enfrentado, como não foi contida, nas escolas, nos quartéis e nos comandos militares a  pregação reacionária e subversiva.

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