Josué Medeiros

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Josué Medeiros é cientista político e professor da UFRJ e do PPGCS da UFRRJ. Coordena o Observatório Político e Eleitoral (OPEL) e o Núcleo de Estudos sobre a Democracia Brasileira (NUDEB)

Opinião

O grande erro de Lula nos 60 anos do golpe

O regime iniciado em 1964 é responsável por radicalizar e consolidar todas as desigualdades que castigam o nosso povo – e que Lula pretende combater com seu governo

O presidente Lula e o presidente do Superior Tribunal Militar, Joseli Parente Camelo. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Lula cometeu seu maior erro como presidente ao vetar que o Estado brasileiro promovesse cerimônias para rememorar os 60 anos do golpe de 1964. Não se trata apenas da relação entre democracia e o 8 de janeiro, o que supostamente justificaria a decisão do presidente, no sentido de apaziguar a relação com os militares. O problema é que o presidente coloca como centro estratégico do seu terceiro mandato o combate às desigualdades. E não é possível entender e superar as desigualdades brasileiras sem falar na ditadura militar.

O regime iniciado em 1964 é responsável por radicalizar e consolidar todas as desigualdades que castigam o nosso povo – e que Lula pretende combater com seu programa de governo. Foi um golpe liderado pela alta cúpula militar com apoio estrutural e decisivo das elites econômicas civis e do governo dos Estados Unidos, a partir de um sentido que unificava esses setores: derrotar definitivamente as diversas mobilizações populares – de trabalhadores fabris, camponeses, da juventude, entre outras – que pressionavam por um novo arranjo político e econômico centrado na distribuição mais igualitária das riquezas que o país produzia e dos meios de produção dessa riqueza.

O regime militar de 1964 teve absoluto sucesso nessa missão – e por isso foi apoiado pela burguesia brasileira e pelo governo estadunidense por duas décadas, só sendo abandonado quando deixou cumpri-la. Tal êxito resultou em um país extremamente desigual, com ilhas de riqueza convivendo com uma massa de pobres sem acesso às mínimas condições de vida digna. A obscena e inaceitável situação de dezenas de milhões de brasileiras e brasileiros passando fome, prioridade número zero do governo Lula, é um projeto que vem do processo de colonização do Brasil e que poderia e teria sido derrotado no século XX não fosse o golpe de militar de 1964. Se ainda hoje o presidente precisa estruturar uma ação estatal para tirar o país do mapa da fome, isso se deve em grande parte aos militares no poder e afirmar isso é uma condição fundamental para que esse quadro não se perpetue. 

Outra desigualdade que foi aprofundada pelo regime militar de 1964 é a dimensão do racismo estrutural. As múltiplas violências contra as pessoas negras no Brasil resultam do processo histórico de escravização, o qual durou formalmente quase três séculos e que trouxe de modo forçado ao nosso território, pelo menos, dez milhões de pessoas escravizadas oriundas do continente africano. Pior, quando a sociedade brasileira decidiu por encerrar legalmente a escravidão, isso foi feito sem qualquer política de integração da população antes escravizada, tais como reforma agrária e garantia de emprego e renda. 

Os militares no poder aprofundaram as desigualdades raciais em pelo menos três dimensões estruturais. Além da econômica que já tratamos nesse texto, a Ditadura Militar radicalizou o racismo na dimensão da violência estatal e da segregação urbana. 

 Com relação às violações de direitos humanos perpetradas por agentes do Estado, para além da grave perseguição à militância das organizações de esquerda, a naturalização da violência das Polícias Militares é provavelmente o pior e mais duradouro legado do regime militar. Passados 35 anos da promulgação da Constituição de 1988, as PMs seguem com licença para matar e violar direitos humanos, o que ocorre majoritariamente com pessoas negras moradoras de favelas e periferias das grandes cidades brasileiras. Lula tem afirmado seu compromisso com combate ao racismo estrutural e não é possível dar consequência a isso sem marcar o papel dos militares na violência tanto na ditadura quanto pelas PMs durante o regime democrático. 

A desigualdade urbana é outra herança maldita que o presidente precisa enfrentar hoje. Foi no regime militar que o Brasil consolidou sua urbanização desigual, com a maioria da população vivendo em cidades e não mais no campo. Dezenas de milhões de famílias, em sua maioria de pessoas negras, migraram para as cidades e foram empurradas pelo modelo econômico e pela ação do Estado para as favelas e periferias, vivendo sem moradia digna, sem transporte de qualidade, sem educação e saúde, enfim, sem direito à cidade. O governo Lula desenvolve uma série de políticas públicas para as favelas e periferias, criando inclusive a Secretaria Nacional de Periferias no Ministério das Cidades e não falar do papel da ditadura militar na consolidação das desigualdades urbanas é limitar o alcance dessas políticas públicas. 

Por fim, mas não menos importante, é crucial trazer a relação com a natureza, tema cada vez mais urgente em tempos de emergência climática. Novamente, a relação predatória do modelo econômico capitalista com os biomas brasileiras não foi inventada pela ditadura, mas coube aos militares consolidar e avançar a exploração irresponsável da Amazônia e do Cerrado, apoiando a expansão do agronegócio, da mineração, do garimpo, muitas vezes de modo violento contra os povos indígenas, populações ribeirinhas, trabalhadores do campo. Se hoje o Brasil pode se colocar na vanguarda das ações efetivas de combate às mudanças climáticas, isso precisa ser feito ressaltando o papel dos militares na destruição do meio ambiente em nosso país.

Em suma, é preciso lembrar para nunca mais acontecer a ditadura. E lembrar para que possamos de fato combater às desigualdades que os militares no poder aprofundaram. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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