Clarisse Gurgel

Doutora em Ciência Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professora do departamento de Estudos Políticos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

Opinião

O golpe já foi dado

O fascismo é como uma incubadora de guerra interna. Sua aparição é sempre um golpe

Foto: EVARISTO SA/AFP
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Há uma frase conhecida, extraída de um teórico clássico da guerra, Claus Von Clasewitz, que diz que a política é a guerra por outros meios.

Nas favelas e periferias, temos o oposto: a guerra como politica por outros meios. Esta inversão, em que a política devolve o lugar à guerra, pode ser observada no cotidiano dos marginalizados do Brasil, há centenas de anos. Envolve a suspensão da ordem, uma quebra das regras de convivência, a instauração do terror, uma anulação de direitos, que distingue a vida na margem e a vida na cidade.

Nesta suspensão da ordem, o trabalhador mais pobre do Brasil, aquele que mais trabalha, é tratado como inimigo da nação, em uma guerra do Estado contra os marginalizados. A conversão da política em guerra é o que torna o marginalizado um marginal. Na cidade, até então, o que “está do outro lado” é cidadão.

Muito se ouviu dizer que o Brasil mudaria, quando o morro descesse para o asfalto, em uma alusão a uma possível e sonhada tomada, por parte dos que trabalham, das estruturas da ordem estabelecida. O contrário, porém, parece ocorrer: o asfalto passou a ser espaço, também, para a mesma inversão da guerra como politica por outros meios – de guerra aberta, de movimento. É como se a luta de classe direta ganhasse um proscênio: nele, o que representa o trabalhador também morre de verdade.

O que ocorreu no sábado, dia 10 de julho, em Foz do Iguaçu, é a morte da representação de classe. Marcelo Arruda, tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, representava ali aquele que, até há pouco, era o maior partido de esquerda da América Latina. A intenção do policial penal Jorge Guaranho era matar toda a “petezada”. No imaginário desse bolsonarista, o que estava fazendo era uma espécie de sábado sangrento, ao estilo da semana que dizimou a Comuna de Paris, em 1871. Guaranho descortinou a luta de classe, iludido e alusivo. Seu ato suspendia a verdade – pois, de fato, é uma ilusão que petistas sejam comunistas – mas expunha também a verdade da verdade: alude ao que é realidade – a luta de classe. O ódio dos que exploram por seus explorados ou por seus representantes.

Rompendo com a ordem, o bolsonarismo impõe uma ordem sem concessões, não mais apenas aos trabalhadores mais pobres. Aqueles que os representam, em seu sentido mais forte, começam a sentir um medo constante de ataque frontal, que faz do bolsonarismo uma espécie de terror paraestatal, independente, pelo que parece, do governo que virá. Este germe bolsonarista parece reivindicar algo aquém da representação. A ordem é de conservação fora da ordem – a política da antipolítica.

A política é a disputa mediada de força de uma sociedade dividida. A polarização supostamente trazida pelo bolsonarismo existe desde a história do mundo, acirrando-se no capitalismo. Se Bolsonaro sente-se em condições de dispensar os vernizes e as mediações que filtram o poder do povo, talvez seja porque este poder popular já esteja bastante pulverizado, inclusive, por nossa própria escolha estratégica pela conciliação de classes.

Recentemente, o vice-presidenciável de Lula, Geraldo Alckmin, esteve em um evento de inauguração de uma fábrica de laticínios da COAPAR, cooperativa de produção de leite do MST. Lá, Alckmin ensaiou também uma forma de desvelamento da luta entre exploradores e explorados. Diante de trabalhadores sem terra, o candidato fez uma confissão: “Aqui, um não explora o outro”. Notando que, ao elogiar os sem-terras, Alckmin condenava a exploração do trabalho exercida pelo empresariado, o candidato tentou se corrigir: “o capital não explora o trabalho, mas é a cooperativa que faz crescer”.

Alckmin, na atividade do MST, faz o recalcado retornar em sua fala. Ao modo freudiano, porém, o retorno do recalcado vem na forma de denegação. A verdade, de fato, não vem à tona, mas vem a velha tática de equivaler capital e trabalho, tratar como iguais seres diferentes, quem explora e quem é explorado. Retorna em sua fala aquilo que a esquerda, hoje, cuida de esquecer, enaltecendo a conciliação de classe ou perdendo de vista o trabalhador no rol dos tantos oprimidos. A ordem, no evento, é restabelecida e o que Bolsonaro desvela em atos de fúria – a luta de classe – é renomeada, agora, como crime político, em que o polo de cá se dispersa no canto da sereia do empreendedorismo, do empoderamento individual e do fracionismo ideológico. Com o bolsonarismo, crime político é pleonasmo: todo político é e deve ser um criminoso. E não resta dúvida pra eles: o polo oposto é o daquele que é partido dos trabalhadores.

O pecado de Alckmin conta com a expiação de Bolsonaro. Após a morte de dezoito miseráveis no morro do Alemão, o “presidente” solidarizou-se apenas com o policial morto. O resto é resto.

Rumores mais recentes falam de um possível golpe de Bolsonaro. O golpe já foi dado. As ondas já se notam: Bolsonaro armou os mais reacionários do País, mantendo tentáculos, nas Forças Armadas e no Judiciário, e conseguiu melhor estruturar bancadas consideradas antes grupelhos de partidecos: bala, boi e bíblia. Há uma massa de indivíduos armados, no campo e na cidade, com uma vontade enorme de matar os que trabalham e os que falam pelos que trabalham. Um traço elitista do bolsonarismo que precisa ser fortemente apontado e que fica como resíduo para muito além das eleições. É disto que falamos, quando estamos tratando de seu papel como fascista. Não se trata de mandatos e sim de mandante. É de seu aspecto residual, de algo que fica mesmo quando acaba.

O fascismo é como uma incubadora de guerra interna. Sua aparição é sempre um golpe. É uma doutrina que se mantém latente e que desvela o sintoma do capital sem qualquer pudor, permitindo, assim, sua passagem ao ato sem maiores obstáculos. Suspendendo a ordem que até há pouco era o principal produto derivado de Lula – a conciliação de classes, a ordem democrática entre forças inconciliáveis – Bolsonaro não só renova a ordem, tida hoje como a única saída para seu horror, como ordena a desordem, tendo-a como patrimônio exclusivo. Esta foi a razão pela qual, aliás, Gramsci alertou para o caráter inessente do fascismo – é um método genérico para casos extremos, em que o comunismo ocupa lugar central daquilo que precisa ser afastado do horizonte. Hoje, mais do que nunca, o espectro é entre o fascismo e a ordem democrática burguesa, em que qualquer radicalidade maior na direção do comum se torna gesto de inconsequentes. Da denúncia à farsa eleitoral, migramos para os apelos desesperados pelo direito ao voto, em um eterno retorno.

Restará a Lula, quando eleito, fazer como alguns de seus colegas latino-americanos: fortalecer a política, a organização de classe, a militância coletiva, a formação da consciência de um povo que, desta vez, tal como na redemocratização do Brasil de 88, escolheu caminhar com seus próprios pés, eleger os seus, mas que deseja ir muito além do voto.

Lula nem mesmo esteve presente na convenção de seu partido em que aprovou seu nome como candidato e é o único quadro político progressista de apelo popular do Brasil de hoje. É de sua responsabilidade dar o contragolpe contra a política da antipolítica e passar a valorizar bem mais as ferramentas coletivas, seu próprio partido, o PT, pelo método coletivo, único caminho efetivamente capaz de impulsionar as transformações de que um país dependente precisa. Isso envolverá, no mínimo, um Lula bem mais democrático, mais disposto a escutar as demandas das categorias de trabalhadores sindicalizados e precarizados, envolverá um Lula disposto a ser pressionado pelos movimentos sociais. Da forma como se apresenta hoje – como o salvador da Pátria -, é difícil crer neste novo Lula, que precisa conduzir uma reforma agrária urgente no Brasil.

Muito menos do que ir para a rua, o que precisamos agora é de algo que envolve a politização dos que trabalham, a organização, o debate, a formação, o estudo, as resoluções práticas, o atendimento de demandas e a disciplina coletiva como saúde da alma. Coisas que os próprios trabalhadores pedem, nos lugares que frequentam: o trabalho, a igreja e a morada. Práticas que o MST e outras forças sociais ensinam.

Aí, ir para as ruas poderá assumir feições de algo muito mais consequente, em que a esquerda recupere seu protagonismo no papel de ruptura da ordem.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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