

Opinião
O golpe contra a democracia já está em curso
Democracias podem definhar na surdina, sorrateiramente, corroídas por dentro pelas próprias autoridades que foram democraticamente eleitas


De qual governo o general Hamilton Mourão faz parte? A pergunta me parece incontornável para qualquer brasileiro que nutra algum apego aos fatos e tenha lido os recentes artigos publicados pelo vice-presidente no Estadão, tal o distanciamento entre o cenário descrito e a realidade vivida.
São públicos e notórios os constantes rompantes de violência e ataques do presidente da República a pilares essenciais da democracia, praticamente transformados em política pública. Entretanto, mais uma vez, Mourão recorre a malabarismos retóricos para tentar atribuir aos opositores do governo, jornalistas e instituições democráticas os atentados que o próprio presidente comete contra a Constituição brasileira.
“A legítima defesa da democracia está fundada na prática existencial da tolerância e do diálogo”, escreveu o general no mais recente artigo, intitulado “Opinião e princípios”. Na pena do representante de um governo cujo mandatário já mandou jornalistas calarem a boca e até chamou um humorista para humilhá-los com a distribuição de bananas, essa bela frase se torna um jogo de palavras desonesto.
Atos de violência não podem ser tolerados num regime democrático, principalmente quando praticados ou estimulados pelo ocupante do cargo político mais importante, como faz Bolsonaro.
A postura violenta do presidente tem consequência concretas e isso fica evidente no caso dos profissionais da imprensa. O fotógrafo do Estadão Dida Sampaio foi covardemente agredido com socos e chutes por membros da milícia política chamada “300 pelo Brasil” quando trabalhava na cobertura de um ato que pedia o fechamento do Congresso Nacional e do STF, realizado em frente ao Palácio do Planalto e com a participação do presidente. Bolsonaro jamais condenou esse crime e muito menos pediu desculpas.
O ataque a Sampaio não é caso isolado. Jornalistas já tiveram que se retirar do famigerado cercadinho em que ficam confinados nas coletivas presidenciais para não apanharem dos fanáticos seguidores do mito. Essa intimidação chancelada pelo Palácio do Planalto é um evidente cerceamento ao exercício da liberdade de imprensa no país.
Bolsonaro tem vasta experiência em atos de violência e terrorismo, que remonta aos tempos em que era capitão do Exército e planejou colocar bombas em quartéis generais para tentar endurecer ainda mais a ditadura militar. Expulso das Forças Armadas, ele entrou para a política e seguiu utilizando os mesmos métodos violentos. Ao longo de seus 30 anos como parlamentar, se aproveitou das salvaguardas do mandato de deputado federal para cometer todos os tipos de ataques à democracia: celebrou torturadores como Brilhante Ustra, debochou dos desaparecidos políticos, pediu a legalização das milícias e elogiou grupos de extermínio.
Ao assumir a presidência da República, Bolsonaro transformou esse comportamento em política de Estado, extrapolando as prerrogativas do cargo para solapar as instituições democráticas por dentro do regime.
Não faltam exemplos dessa ofensiva: montagem do gabinete do ódio dentro do Palácio do Planalto e de gabinetes de deputados aliados, como está revelando a CPMI das Fake News; desmonte da legislação de controle de armas e munições por meio de decretos ilegais para atender seus seguidores; estímulo à formação de milícias políticas para atacar opositores; interferência em órgãos de combate à corrupção e ao crime organizado e participação em atos que pedem o fechamento do Congresso Nacional e do STF.
Para qualquer pessoa minimamente comprometida com a preservação dos marcos democráticos do país, seja de esquerda ou de direita, esse cenário é grave. Entretanto, Mourão classificou essas ameaças de Bolsonaro e seu acólitos como “exageros retóricos impensadamente lançados contra as instituições”. Primeiro que não é exagero retórico, é crime previsto pela Constituição. Segundo que não é impensado, é uma estratégia que visa minar as estruturas que sustentam o regime democrático.
Essa violência patrocinada pelo Planalto é a verdadeira responsável por levar milhares de pessoas às ruas em protestos contra o governo em plena pandemia, algo que não deveria ocorrer por questões de saúde pública.
Democracias não acabam somente com quarteladas, com um cabo e um soldado na porta do STF ou através da publicação de um novo AI-5, como defendeu o deputado federal Eduardo Bolsonaro. Elas podem definhar na surdina, sorrateiramente, sendo corroídas por dentro pelas próprias autoridades que foram democraticamente eleitas e juraram protegê-la, mas que abusam dos seus mecanismos para ampliar seus poderes numa escalada autoritária, como faz Viktor Orbán na Hungria.
Faço esse alerta porque enquanto o país despende energias num debate sobre se a Constituição, em seu artigo 142, confere às Forças Armadas o papel de “poder moderador” da República, o que é um terraplanismo jurídico, o golpe contra a democracia já está em curso, através da progressiva subversão dos princípios elementares que a regem, incluindo o estímulo à violência contra opositores. Algo que o vice-presidente tenta encobrir em seus artigos.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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