Felipe Milanez

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Professor de Humanidades na Universidade Federal da Bahia. Pesquisa e milita em ecologia política.

Opinião

O fim da Amazônia e a tristeza da floresta

Livrar a Amazônia de Bolsonaro é uma tarefa que o Brasil precisa fazer nestas eleições. E onde for possível, votar em congressistas que sejam amigos e defensores da Amazônia

(Foto: Funai)
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A tragédia política do governo Bolsonaro ampliou o temor e as percepções de uma aceleração do fim da Amazônia. Um governo marcado pelo genocídio dos povos indígenas e pelo ecocídio. Um governo que vai guardar para sempre a marca do extermínio dos últimos sobreviventes de povos indígenas isolados: a morte de Aruká Juma, o último homem do povo Juma, e de Karapiru Awa, um sobrevivente de um massacre, ambos mortos por COVID-19, agora se agrava com a triste notícia do falecimento de último indígena de um povo isolado (e desconhecido) que vivia na região do rio Tanaru, em Rondônia: o “índio do Buraco”. 

O corpo do “índio do buraco” foi encontrado em uma expedição do extraordinário sertanista Altair Algayer no dia 23 de agosto. Ele estava deitado em sua rede, ao lado do buraco que lhe servia de casa, com penas de arara sobre o corpo, em uma posição quase mumificada. Seu corpo não apresentava sinais de violência, e nos dias que ficou lá, não foi tocado por animais. Parece uma morte de quem se preparou para ela. Uma transcendência para um mundo espiritual. Uma morte, como descrevi a partir dos relatos de Algayer, em 2009, quando faleceu Ururu, a mais velha mulher do povo Akuntsu, vizinho do povo desconhecido do Tanaru, no que chamei, seguindo percepção de Darcy Ribeiro: “tristeza índia”. 

“Deitou-se na rede e, em vez de dormir, se fez morrer, escreveu Darcy.  Ururu, tal como o homem do povo sobre o qual jamais saberemos o nome, também conseguiu encontrar na sua luta de vida o direito a uma morte digna, após a vida coletiva de seu povo ter sido roubada pelo genocídio.

Com Bolsonaro, o extermínio total, a devastação absoluta e a aniquilação dos rios tornaram não uma projeção de cientistas, mas a escatologia materializada: o fim do mundo se aproxima

Vivendo sozinho ao menos desde 1996, quando foi visto em uma expedição, este homem demonstrou uma extraordinária capacidade de sobrevivência. Construiu mais de 50 casas, abriu dezenas de roçados, manejou, de forma solitária, a floresta que habitava, cuidando da diversidade, da vida, dos animais que caçava. 

Este trabalho com a floresta era apoiado pela tenacidade do trabalho de vigilância e monitoramento liderado por Algayer, sobretudo depois de 2006. Após ter sido encontrado, Marcelo dos Santos, então chefe de Algayer na Frente Guaporé, passou a lutar pela proteção jurídica da área, e pelo direito do homem de permanecer isolado. Mas não teve apoio da Funai e não conseguiu uma interdição formal da terra.

A Funai nos anos 1990, que formalmente anunciava uma política de respeito ao isolamento, não colocava essa política em prática quando se tratava de povos remanescentes de genocídio. Nesse caso específico, conforme Marcelo dos Santos relatou para mim para o livro Memórias Sertanistas, ele solicitou uma intervenção do Ministério Público Federal, que conseguiu uma decisão liminar favorável da Justiça Federal – e ele já havia informado o juiz da necessidade urgente de uma medida cautelar. Mas, todas as cortes seguintes – a segunda instância da Justiça Federal, e o Superior Tribunal de Justiça – declararam nulo este processo: era a Funai quem deveria ter realizado a interdição.

Se juridicamente a proteção era nula, como se descobriu em 2006, a estratégia destes dois grandes sertanistas teve efeito concreto: numa região violenta onde os fazendeiros evitam de qualquer maneira se aproximar da justiça, ninguém invadiu a área, temendo represálias judiciais. 

Nesse período, Algayer foi afastado de forma autoritária da Funai, e a base ficou largada. Houve uma tentativa de contato forçado, e irresponsável, da Funai, quando um servidor foi flechado pelo homem do povo isolado. O trabalho de monitoramento da Funai foi abandonado. Até o retorno de Algayer, em 2006, quando Marcelo dos Santos era chefe da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai. Eu tive a honra de participar da primeira expedição de Algayer em seu retorno para levantar informações, registrar, documentar, encontrar vestígios e elementos para a proteção da área. Foi apenas em 27 de outubro de 2006 que a primeira portaria de restrição de uso da Funai, primeiro passo no processo de demarcação, da Terra Indígena Tanaru, foi publicada. Em portarias sucessivas, a Funai garante 8 mil hectares de proteção, mas o processo de demarcação que já deveria ter sido terminado, até hoje ainda não foi. 

Devastação. A Floresta Amazônica perdeu mais de 8,5 mil quilômetros quadrados de cobertura vegetal apenas no último ano – Imagem: Greenpeace Brasil/Arquivo

Há um grande temor de que fazendeiros aproveitem da tragédia para invadir a área. E discussões sobre o que fazer. Indigenistas passaram a expor diferentes propostas, nos últimos dias, sobre o destino desta terra indígena, a primeira na qual o povo foi completamente exterminado. O Observatorio dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato propuseram, em nota, que a terra indígena deve “seguir preservada como um memorial”. Antenor Vaz, indigenista especialista na defesa dos direitos dos povos indígenas isolados, também propõe um memorial que sirva para a capacitação de políticas públicas de defesa dos povos isolados. Outros povos indígenas em Rondônia, vizinhos do povo genocidado, discutem ocupar a área, e protegê-la. O Brasil é terra indígena, e cabe aos povos indígenas decidirem sobre a ocupação de seus territórios tradicionais. É o que eu penso.

Importa que esta terra deve seguir o processo de demarcação e ser efetivamente demarada – isso havia sido discutido em 2006. Igualmente, a Terra Indígena Piripkura, onde vivem os últimos três sobreviventes deste povo, Rita, Tamanduá e Baita, também deve ser demarcada. Estes territórios não podem, de forma alguma, cair nas mãos de seus algozes. Não podemos jamais aceitar, no Brasil, argumentos colonialistas de conquistadores contemporâneos tais como aqueles que estão em jogo do debate sobre o “marco temporal”, que tentam relativizar o Indigenato, que é o direito originário que os povos indígenas tem sobre suas terras, ao direito de conquista, que é aquele que celebra a barbárie da vioilência da conquista, do colonialismo, e da expansão violenta das fronteiras hoje em dia, tal como a política genocida de Bolsonaro. 

A demarcação das terras de todos os povos indígenas implica reconhecer a violência da conquista, do extermínio e do colonialismo. O isolamento deste último homem se devia a um genocídio: na época em que ele foi encontrado, indigenistas da Funai recolheram testemunhos que apontava fazendeiros como mandantes de ataques com armas de fogo, assim como de envenenamento. Os crimes na floresta precisam ser investigados –tal como a Polícia Federal está agindo para encontrar os mandantes do assassinato de Bruno Pereira e de Dom Phillips, também é preciso encontrar os genocidas destes casos terríveis que aconteceram em Rondônia. 

A morte destes últimos sobreviventes de genocídios nos alerta do fim da floresta – e do nosso próprio fim. Eles cuidaram, até seus últimos dias, de proteger a floresta, para que pudessem sobreviver. Sempre souberam que a floresta viva é o legado que podem deixar para as futuras gerações. Tanto o homem conhecido por cavar buracos rituais dentro de suas casas, como Aruká Juma, como Karapiru Awa, como os últimos piripkura, como os últimos Kanoe, como os últimos Akuntsu. E assim como lutavam Rieli Franciscato (leia aqui), Maxciel dos Santos (leia aqui) e Bruno Pereira, três grandes indígenas – e sertanistas – assassinados no governo Bolsonaro por defender a vida dos povos indígenas isolados livre em seus territórios.  

Não há mais que esperar um ponto de não retorno de quando a floresta passa a se autodestruir por razões climáticas e ecológicas. Este ponto de não retorno já foi ultrapassado pelo genocídio e pela crescente violência contra defensores ambientais. Não há mais tempo de tolerância ao desmatamento, violência e genocídio. Este ano eleitoral começou com o massacre de uma família de ambientalistas no Pará, a família de Zé do Lago, que defendia o rio Xingu. Um assassinato impune. Neste ano tem se agravado notícias de violência, de ameaças, de assassinatos, de crimes terríveis, ao mesmo tempo que Bolsonaro gaba-se politicamente da destruição e do saque. É a barbárie em estado puro, tal como Frantz Fanon descrevia a situação colonial. O fim do último homem de um povo isolados, vítima da invasão da Amazônia promovida pela ditadura em benefício de latifundiários, chegou nesse ano terrível que estamos vivendo. Não podemos mais esperar mais.

É preciso agir de maneira urgente. Combater a impunidade. E mudar o rumo da destruição com uma mudança política brusca. Livrar a Amazônia de Bolsonaro é uma tarefa que o Brasil precisa fazer nestas eleições. E onde for possível, votar em congressistas que sejam amigos e defensores da Amazônia. Muitos dos ruralistas que defendem lobbies da invasão e do saque são eleitos no sul e no sudeste do Brasil, para onde caminha a madeira e o ouro ilegal, onde residem os grandes pecuaristas. Estes mesmos locais devem votar em candidaturas que defendem a Amazônia, como Sonia Guajajara, pelo PSOL, em São Paulo. 

Há sonhos em curso de reconstruir a Amazônia, e estes sonhos devem ser compartilhados. A cacica Katia Tônkyré, do povo Gavião Akrãtikatêjê, conseguiu recuperar uma área de seu território tradicional após anos de luta, e está replantando os castanhais, no Pará. Claudelice Santos, irmã de José Cláudio, assassinado com sua esposa Maria, em 2011, está plantando agroflorestas nas áreas degradadas do PAE Praiaalta Piranheira, em Nova Ipixuna, Pará. 

Por toda a Amazônia, defensores e defensoras ambientais lutam em defesa da floresta e chamam aqueles que vivem fora da Amazônia para lutar junto. Esta foi a mensagem de Davi Kopenawa, quando esteve em São Paulo para a feira do Livro, numa conversa organizada pelo Sesc e que tive a honra de mediar. “O futuro é hoje”, ele disse. Ele contou que atravessou a linha da demarcação para vir até a cidade chamar aqueles que vivem longe da floresta, para se unirem: “nós devemos lutar juntos para salvar a terra”. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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