Aldo Fornazieri

Cientista político, autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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O dever do TSE

Bolsonaro não pode escapar ileso

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O ex-presidente Jair Bolsonaro, nos Estados Unidos. Foto: CHANDAN KHANNA/AFP
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Na Atenas democrática do século V a.C., os políticos que conspiravam contra a democracia e a liberdade pública eram submetidos a julgamento público pelos cidadãos chamado óstraco. Os condenados sofriam o ostracismo, que consistia num banimento ou exílio de dez anos. O julgamento tinha como objetivo impedir candidatos com tendências tirânicas ou monárquicas e visava salvaguardar a democracia e a liberdade política.

No julgamento de Jair Bolsonaro no TSE, apenas subsidiariamente os ataques ao Estado Democrático de Direito e às liberdades políticas aparecem na formalidade dos votos proferidos pelo relator e pelos juízes. Em essência, o julgamento tem como objeto os crimes eleitorais perpetrados pelo ex-presidente. Notadamente, o abuso de poder político e de autoridade, o uso de equipamentos públicos para campanha eleitoral e a disseminação de mentiras contra o sistema eleitoral. O fato concreto que levou Bolsonaro às barras do TSE consistiu na reunião com embaixadores estrangeiros para atacar o sistema eleitoral, as urnas eletrônicas e o próprio tribunal.

Os votos não têm se eximido, porém, de apontar o contexto político que envolve a prática dos crimes eleitorais. Em seu voto, em favor da inelegibilidade de Bolsonaro por oito anos, o relator Benedito Gonçalves afirmou: “Não se pode fechar os olhos para os efeitos antidemocráticos de discursos violentos e de mentiras que colocaram em xeque a credibilidade da Justiça Eleitoral”.

A reunião com os embaixadores foi apenas mais um dos eventos nos quais Bolsonaro atacou o sistema de eleições. Mas foi grave, pois expressou um ato de traição ao País, com o objeto de desacreditar as eleições perante representantes de outras nações. Bolsonaro passou por cima do princípio de responsabilidade que deve conduzir as ações e palavras do presidente da República, visando legitimar ações golpistas futuras.

As atitudes de Bolsonaro, destaca o relator, demonstram “um preocupante descaso em relação às conquistas democráticas”. Não é descaso. Bolsonaro agiu de forma sistemática, ao longo de quatro anos, para solapar a democracia, pois pretendia ficar no poder ganhando ou perdendo. Queria intervir nos tribunais superiores para tê-los submissos à sua vontade.

A tentativa de golpe fracassada em 8 de janeiro teve em Bolsonaro o mentor intelectual e o principal incitador e propagador. O ex-presidente não pode se desvincular da minuta do golpe encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. Também não pode se evadir das articulações golpistas encontradas no celular do coronel Mauro Cid, seu ajudante de ordens.

Sua conduta e as conversas entre militares contidas no celular de Cid revelam, aliás, um traço da personalidade de Bolsonaro: trata-se de um homem frágil e covarde, sem coragem para assumir e liderar o projeto que deseja realizar, o golpe. No fundo, Bolsonaro queria que outros, os militares, o Alto-Comando do Exército, perpetrassem o golpe para ele. Por isso se espanou do País para assistir dos Estados Unidos a ação de terceiros.

O relatório de Gonçalves desnuda as artimanhas mal-enjambradas usadas pelo ex-presidente para construir seu objetivo. De um lado, atacava de forma aberta e corrosiva o TSE, alguns de seus ministros e o sistema de urnas eletrônicas. Aqui os objetivos eram três: 1. Conseguir mudar o sistema de votação para articular uma possível fraude. 2. Em caso de derrota, abrir caminho para questionar o resultado das eleições. 3. Abrir caminho a uma intervenção no Tribunal, como ficou evidenciado, tanto na minuta do golpe quanto nas mensagens no celular de Cid.

Bolsonaro também usava artimanhas diversionistas. Falava em nome da defesa da democracia para atacá-la, valia-se de teorias conspiratórias contra o Estado Democrático de Direito e o processo eleitoral, falava em agir “dentro das quatro linhas” da Constituição para violar a própria Constituição, defendia a liberdade de opinião para mentir sem limites, com vistas a destruir a liberdade no futuro. É um método observável em quase todos os golpes perpetrados ao longo da história. Os golpistas, os ditadores, a exemplo do que fez o próprio Hitler, valem-se das liberdades democráticas para destruir a liberdade, a democracia e a república.

A declaração da inelegibilidade de Bolsonaro, as investigações da CPI dos atos golpistas e os inquéritos do Supremo Tribunal Federal acerca dos atos antidemocráticos e da invasão das sedes dos poderes em 8 de janeiro são um conjunto de ações que têm o mesmo sentido. Expressam a reação forte, legítima e constitucional num movimento de autodefesa das instituições. Tudo indica que, pela primeira vez na história do golpismo brasileiro, os golpistas terão um destino merecido. Serão condenados e pagarão pelos seus crimes contra a liberdade, a democracia e o Estado Democrático de Direito. •

Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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