

Opinião
O crime da indiferença
A violência só existiu porque houve quem visse e nada dissesse. Por detrás de quem atuou estiveram os outros, os que lá atrás assistiram a tudo sem nada dizer


A violência ilegítima não é política, é o fracasso da política. Se a política se baseia, como diz Hannah Arendt, na pluralidade humana, então a política serve justamente para arbitrar essa pluralidade e construir soluções coletivas legítimas para os problemas que dizem respeito à vida coletiva, ou ao vivre ensemble, como a literatura política francesa gosta de dizer. Não, a violência não é a política por outros meios. Ela representa apenas a negação da política. Nesse sentido, o assassinato de Marcelo Arruda, dirigente do PT, por um ativista político bolsonarista foi um ato contra a política. Aqueles tiros foram tiros na política – tiros em cheio na política brasileira.
Depois da tragédia, nova tragédia, desta vez com a justificação da “polarização” política. Absolutamente revoltante. Na verdade, o que essa gente quer dizer é que não há inocentes nesta história e que ambos os lados têm culpa. Como se não houvesse vítima e agressor. Como se não houvesse um morto. Como se não houvesse crime.
Se bem percebo o que querem dizer, essa gente da “polarização” acha que a esquerda tem culpa por não ter colaborado no seu próprio banimento político. As vítimas dos processos de Moscou, depois da confissão, depois da condenação e já encostadas ao paredão, ainda eram obrigadas a gritar “viva Stalin”. A culpa da esquerda, se bem os entendo, foi não ter aplaudido o seu próprio pelotão de fuzilamento durante o golpe parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff e, depois, a prisão de Lula da Silva. A esquerda é culpada por ter lutado democraticamente pela sua própria sobrevivência e com isso ter criado a tão odiosa “polarização”. A culpa da esquerda foi não aceitar a criminalização do seu principal partido. Pior ainda, a culpa da esquerda foi ter saído das eleições com 47 milhões de votos. E, finalmente, não devemos esquecer a última culpa da esquerda – estar à frente em todas as pesquisas. No fundo, no fundo, a responsabilidade da esquerda é existir. Ódio absoluto – é a tua existência que motiva o meu ódio. O ódio radical é ódio do próprio ódio.
Se quisermos discutir a sério o que se passou, devemos começar por reconhecer que nada disso é de agora. Tudo isso vem de trás, de quando se tornou evidente que era preciso enfrentar com coragem a retórica violenta que tomou conta da vida política do Brasil. Agora, foi apenas a passagem ao ato. Tudo isso vem do tempo em que se dizia que era preciso “fuzilar essa petralhada toda” e que “a petralhada vai tudo para a ponta da praia”, numa obscena alusão ao pior da gíria militar usada na ditadura. Tudo isso vem daí. Agora, foi apenas a passagem ao ato.
Houve muita gente cúmplice, é verdade. Mas o mais chocante foi a indiferença. A maior aliada do presidente Jair Bolsonaro foi a indiferença. A maior amiga da escalada da violência foi a indiferença. A indiferença que é filha da intimidação, do medo e da covardia. E, por favor, deixem-me clarificar um ponto importante. A indiferença de que falo não diz respeito à indiferença social, ao alheamento em face dos assuntos públicos. Não gosto dessa atitude, mas ela é absolutamente legítima dentro da moral democrática. Mas não é dessa indiferença que estou a falar. A indiferença de que aqui falo tem a ver com a distinção entre bystanders e perpetrators, ou seja, com a distinção entre os que “fazem o mal” e aqueles que assistem, desviando o olhar do “mal que está a ser feito”. É nesses últimos que penso quando falo de indiferença.
Na verdade, a violência só existiu porque houve quem visse e nada dissesse. Por detrás de quem atuou estiveram os outros – os que lá atrás assistiram a tudo sem nada dizer. Os abusos foram cometidos à sua frente e perante o seu silêncio. E esse silêncio permitiu a violência, que foi crescendo, escalando. É a essa indiferença que me refiro. À indiferença de quem tudo observou de cima, da janela, enquanto cá em baixo, na rua, se desenrolou a ação. Na bela fórmula de Gramsci, refiro-me à indiferença como sendo o “peso morto da história”. Sim, eu também detesto os indiferentes. E numa coisa podemos concordar – houve indiferença a mais no Brasil. É tempo de acabar com ela. E esse tempo está a chegar. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O crime da indiferença”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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