Esporte
O coletivo em crise
Vivemos a era da supervalorização do técnico, com os jogadores a figurar apenas como cumpridores de ordens, sem possibilidade de criar


A sequência de acontecimentos negativos que temos visto no futebol brasileiro, com a não classificação para as Olimpíadas de Paris, o mau desempenho da Seleção principal e as confusões nos torneios locais, me deixam com a sensação de que é necessário uma “chacoalhada”.
Isso, inclusive, já aconteceu em épocas anteriores.
Me vem à lembrança a Copa de 1950, quando perdemos o título dentro de casa. Já tínhamos, à altura, o melhor futebol de todos em matéria de jogadores – basta pensar que, no time, jogavam juntos Barbosa, Zizinho, Jair Rosa Pinto e Ademir, apenas para citar alguns –, mas isso não foi o bastante para a taça. E essa equipe espetacular, diga-se, tinha vencido todas as partidas anteriores à final.
A Seleção Brasileira ainda jogou o Mundial seguinte e só então promoveu as mudanças profundas que nos levaram à conquista do primeiro título em uma Copa do Mundo, em 1958.
Na ocasião, mudaram desde a diretoria da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) – que é central para qualquer alteração, uma vez que dela partem as orientações – até a composição de uma Comissão Técnica atualizada com os métodos de treinamento.
Passou a ser adotada, além disso, uma assistência de saúde que incluía tratamento dentário e psicológico, entre outras medidas importantes para o convívio e o melhor desempenho possível entre todos.
O que houve de fundamental na campanha do Mundial na Suécia foi o relacionamento franco entre os integrantes da Seleção, o elevado índice de liberdade, que leva à confiança, o fator emocional mais importante de todos em uma disputa esportiva.
Devemos essa estrutura vencedora ao chefe da delegação, Paulo Machado de Carvalho, empresário do ramo da comunicação que estava então à frente do meio mais avançado daquele tempo, a televisão – ele foi o fundador da TV Record e hoje dá nome ao estádio do Pacaembu, em São Paulo.
Sua participação ficaria demonstrada anos depois, quando ele próprio, em uma entrevista, contou que havia sido procurado pelos jogadores Didi e Nilton Santos, já na Suécia, em pleno Mundial, e ouviu deles que era a hora de escalar Garrincha, Pelé e Zito.
E tudo foi feito sem que se quebrasse nenhuma hierarquia ou se desrespeitassem os colegas que teriam de ceder suas vagas. E isso foi possível porque havia sido construído um ambiente de confiança, de camaradagem e entendimento.
Claro que, antes de levar adiante as alterações, eles foram conversar com o técnico Vicente Feola, de forma simples, e sem atingir a ordem no andamento da campanha, que, como sabemos, terminou vitoriosa e até hoje nos dá orgulho.
Acho importante e oportuno lembrar desses detalhes, para poder compará-los com o que temos vivenciado hoje.
Vivemos, a meu ver, uma era na qual temos supervalorização do técnico, com os jogadores a figurar apenas como cumpridores de ordens, isolados em sua individualidade, seguindo esquemas táticos rígidos que, de maneira geral, não lhes permite utilizar suas capacidades de criar.
Nesse contexto, os dribles são cada vez mais raros e os craques de fato destacados em número cada vez menor.
Toda atividade coletiva é mais bem desenvolvida quanto praticada em conjunto.
Em razão disso, a Copa do Mundo mantém ainda um valor simbólico grande, mas a qualidade do futebol apresentado não é mais a mesma.
Os clubes que conseguem manter seus jogadores por mais tempo em seus quadros seguem à frente em termos de qualidade – exemplo disso são o Real Madrid e o Manchester City, entre outros.
Esses clubes dominam o funcionamento da estrutura do futebol mundial e renovam periodicamente seus elencos com as melhores revelações que vão buscar no futebol periférico – onde se inclui hoje o Brasil.
Trata-se de uma situação complexa, que precisa ser vista em profundidade uma vez que o esporte se tornou uma fonte de negócios cada vez mais potentes e significativos.
Volta e meia, fala-se nos grupos divididos – de um lado, a Libra e, de outro, o Forte Futebol.
Em outros momentos históricos já tivemos grupos que se juntaram e se separaram ao sabor da defesa de seus interesses. Dessa forma, fomos saindo do amadorismo ao profissionalismo.
O profissionalismo, no entanto, não é algo pronto e acabado. É um caminho em construção. E, neste momento, há muitas pedras no caminho. •
Publicado na edição n° 1300 de CartaCapital, em 06 de março de 2024.
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