Ricardo Carneiro

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É professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

Opinião

O capitalismo sem risco

O dilema seria financiar um setor com as particularidades da transição ecológica com recursos externos bancados pelo de-risking vis à vis a mobilização da poupança doméstica, envolvendo ação articulada do mercado de capitais e dos bancos públicos

Dinheiro, Real Moeda brasileira Foto: José Cruz/Agência Brasil
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O título deste artigo soa como mais uma crítica superficial ao capitalismo. Todavia, seu significado está longe disto. Independentemente de preferências ideológicas, ele traduz aspectos muito relevantes desse sistema na sua configuração contemporânea, no que se refere à articulação entre Estado e Mercado. De uma perspectiva genérica, ele expressa o que a economista Daniela Gabor denominou de Wall Street Consensus, para se referir a seu modus operandi recente, enquanto sucedâneo do Washington Consensus.

A despeito da grande crise financeira de 2008, cujos efeitos são sentidos até hoje, e do monumental resgate do sistema financeiro posto em prática pelos bancos centrais, este novo consenso busca um ainda maior protagonismo desses mercados e interesses. Mas, vai além. Agora trata-se de definir uma proteção a esses mercados que não seja desencadeada a posteriori, como a assinalada ação dos bancos centrais. Ela teria que orientar toda a ação do Estado, visando mitigar de modo radical o risco inerente aos investimentos e à participação dos mercados financeiros, por meio de um conjunto de instrumentos e ações, caracterizadas como o de-risking dos primeiros.

De um ponto de vista concreto, as ações do de-risking objetivam viabilizar a participação do sistema financeiro e dos investidores de portfólio em uma gama ampliada de ativos, como aqueles da transição ecológica incluindo os países em desenvolvimento, obedecendo a lógica da financeirização, de ampliação recorrente dos ativos financeiros negociados em mercados organizados. Assim, a nova institucionalidade articula, de um lado, o sistema financeiro, incluindo os investidores institucionais que administram a riqueza financeira, por meio da Glasgow Financial Alliance for Net Zero (GFANZ), e de outro, os investimentos em descarbonização, concentrados na matriz energética.

Enfatizar os segmentos da transição ecológica ou dos países em desenvolvimento não deve obscurecer o fato de que as ações do de-risking são necessariamente mais amplas e dizem respeito a como viabilizar o investimento em ativos instrumentais, num ambiente financeirizado, que hipervaloriza a alta liquidez e  o baixo risco. Por sua vez, no novo padrão de governança das empresas, as práticas de uso dos lucros na distribuição de dividendos e buybacks de ações, induz o investimento a se realizar com aumento significativo da alavancagem. Isto necessariamente magnifica o papel do sistema financeiro na decisão de investimento. Na prática, a valoração da alta liquidez e baixo risco, se exacerbam.

Da perspectiva do de-risking não deixa de ser intrigante que o sistema financeiro privado – por meio da Glasgow Financial Alliance for Net Zero (GFANZ) – exatamente o segmento mais representativo da financeirização e mais avesso ao risco e que mais valoriza a liquidez, tenha se constituído em protagonista do financiamento do processo de transição ecológica, sabidamente um segmento de alto risco, e baixíssimas rentabilidade e liquidez. Ademais, enquanto a descarbonização da economia demanda investimentos de longo prazo e período de implantação dilatado, o perfil do segmento financeiro é intrinsicamente cíclico, alternando entre períodos de searching for yielding e flight to quality, nas economias centrais, com maior intensidade nas economias periféricas. Qual a solução para enfrentar, além da baixa liquidez, baixa rentabilidade e alto risco dos investimentos, a oferta cíclica de financiamento? Qual a abrangência e intensidade da ação estatal no de-risking? Não haveria estratégias mais eficazes e de menor custo?

O Brasil, por meio do Ministério da Fazenda, aderiu de forma decisiva a essa estratégia de financiamento da transição ecológica, preterindo outras combinações possíveis. Seus delineamentos fazem parte do documento ECO INVEST BRASIL (Programa de Mobilização de Capital Privado Externo e Proteção Cambial). Suas diretrizes para financiar a transição ecológica são inequívocas: mobilizar o capital privado, em particular o externo, via mercado de capitais e integrar as empresas ao sistema financeiro internacional. Como veremos a seguir, a forma pela qual se pretende acessar os recursos externos constitui uma importante regressão na estruturação do sistema financeiro brasileiro em razão do seu incentivo à dolarização e, a atração de investidores de portfólio.

Para justificar essa estratégia, o documento parte de um diagnóstico equivocado. Primeiro, postula que é baixa a participação do investimento estrangeiro no Brasil. Os números da Posição Internacional de Investimento de Dezembro de 2023 questionam esta afirmação. Eles mostram para o Brasil um total do passivo externo em torno de US$ 2 trilhões, ou seja, R$ 10 trilhões, equivalente a 100% do PIB. Desses, US$ 1,16 trilhãos ou R$ 5,8 trilhões são investimento direto estrangeiro, correspondendo a 58% do PIB.

Os números do investimento de carteira (portfólio) também são muito expressivos, US$ 535 bilhões ou R$ 2,5 trilhões, cerca de 25% do PIB. Cabe destacar que desse total do investimento de carteira, algo como US$ 388 bilhões ou cerca de R$ 2 trilhões ou 20% do PIB foram emitidos em reais e são negociados nos mercados domésticos. Sugerir que esses números são baixos porque os investidores externos ainda têm pequena participação no mercado doméstico de títulos – de cerca de 10% do estoque – concentrados em títulos públicos, desconsidera uma dupla realidade. Primeiro, o crescimento dos mercados locais é recente, pós-GCF, muito rápido e se compara com um segmento de maior dinamismo: o mercado de títulos de dívida com a base de investidores domésticos, que em 2013 representava apenas 8,8% do financiamento do SFN ao setor não financeiro e atualmente perfaz 17,8%.

Segundo, o documento afirma que a volatilidade cambial desencoraja investimentos estrangeiros e aumenta os custos de proteção. A afirmação é questionável para o IDE e mesmo para investimentos de portfólio, como mostra o excepcional desempenho dos mercados locais de títulos, para investidores estrangeiros, três vezes maior do que o mercado offshore. A volatilidade cambial, de fato, é um problema das moedas periféricas, incluindo a brasileira, mas ela foi mitigada pelo grande acúmulo de reservas, que, aliás, tem um custo fiscal significativo. O fato de os investimentos de portfólio estrangeiros em mercados locais se concentrarem em títulos da dívida pública indica que o mix de risco de crédito e rentabilidade desses títulos os torna mais atrativos, pois o risco cambial é o mesmo dos títulos privados. A flutuação cambial, com reservas elevadas, constitui um mecanismo de proteção da moeda nacional frente a episódios de fuga para a qualidade mais intensos, pois ao impor perdas aos investidores desencadeia o stop loss e limita a especulação.

A afirmação da limitação ao investimento imposta pela volatilidade cambial é ainda mais incorreta quando se considera o IDE e os investimentos em infraestrutura por parte de empresas estrangeiras. Os dados do Banco Central sobre o estoque de IDE no Brasil mostram, para 2021, uma concentração elevada nos Serviços, ou seja, setores produtores de non-tradeables e sem proteção cambial natural, de cerca de 60% do estoque de investimentos. A atividade de infraestrutura, estritamente definida, responde por cerca de 20% do total do IDE no país. A rigor, nem haveria a necessidade de citar números agregados; a presença do capital estrangeiro nas atividades de infraestrutura – estradas, energia elétrica, saneamento, portos, aeroportos etc. – é perceptível a olho nu.

Ao insistir na tese da baixa participação do investidor estrangeiro na atividade de infraestrutura, e consequentemente da pretendida transição ecológica, o documento da Fazenda está mirando um tipo muito particular de financiador, ou seja, um subconjunto muito específico de investidores de portfólio que se supõe canalize financiamento de melhor qualidade em termos de volume, prazos e remuneração exigida. Mas, contraditoriamente, a sua atração exigiria um esforço de de-risking muito mais intenso em especial no que diz respeito à flutuação cambial. Ademais, teria que lidar com dois obstáculos que não seriam equacionados pelo de-risking:  maior rentabilidade, liquidez e menor risco de crédito dos títulos públicos, e a exigência do investment grade pelos Investidores Institucionais menos especulativos.

No âmbito da estratégia de promover o aumento do financiamento por meio da atração de investidores estrangeiros, várias linhas de apoio foram definidas. Assim, foram instituídas, no âmbito do Fundo Clima, a blended finance, a facilidade de liquidez e a proteção cambial. Em paralelo, na Lei 14.801 foi reintroduzida a possibilidade de emissão de debêntures com correção cambial no mercado doméstico. A medida é por si só um retrocesso e pode levar ao avanço da dolarização do mercado de capitais.

A proposta do blended finance é induzir o operador/concessionário do projeto de infraestrutura a se financiar em moeda estrangeira, seja por emissão de títulos nos mercados internacional, seja no mercado doméstico, neste último caso, com a alternativa de correção cambial. Uma vez definido o financiamento externo, o investidor se credencia a obter uma parte de seu financiamento em moeda local, provavelmente de um banco público, devendo cumprir requisitos de alavancagem mínima e de elegibilidade do projeto. Neste arranjo um lugar é reservado ao investidor de portfólio estrangeiro, a quem caberia um papel importante no provimento do financiamento dos projetos.

A facilidade de liquidez visa apoiar o investidor/operador que se endividou em dólar ou emitiu títulos com correção cambial, ante uma intensa desvalorização. O financiamento, definido como um crédito-ponte, se destinaria a bancar o fluxo de obrigações adicionais decorrente do aumento inesperado dos encargos da dívida. O desenho dessa linha está restrito ao enfrentamento de desequilíbrios de caixa temporários. Ou seja, não dá conta de mudanças mais duradouras da taxa de câmbio e da deterioração dos indicadores de endividamento de um projeto ainda em execução. Esta tarefa caberia à proteção cambial, instrumento que deverá proteger também o investidor de portfólio que adquiriu títulos sem correção cambial.

A definição do desenho da linha de proteção cambial é bastante imprecisa. O documento da Fazenda fala em hedge cambial de longo prazo e a custo menor para “investidores diretos”, mas é contraditório falar em proteção cambial de longo prazo para o investidor/operador, exceto no período de implantação do projeto durante qual, dado o peso da parcela de financiamento externo, uma desvalorização pode deteriorar as margens de segurança. No caso desses investidores, como mostra a grande relevância do IDE no Brasil, a demanda por hedge cambial não é decisiva na sua equação de decisão de investimento. O investidor em ativos instrumentais, portanto de um investimento ilíquido e de longo prazo, tem como preocupação central o risco de conversibilidade e não de volatilidade. Vale dizer, pela natureza do seu investimento, a reconversão do valor dos ativos não está no horizonte de suas decisões. A solidez das contas externas e níveis elevados de reservas – que é o caso do Brasil – são garantias suficientes do seu investimento. Sua preocupação principal é a remessa de lucros e dividendos, cujo timing pode ser administrado com diferimento de prazos ou o uso dos instrumentos de hedge disponíveis no mercado, inclusive os oferecidos pelo Banco Central.

A despeito da confusão semântica do documento da Fazenda, é muito provável que uma das preocupações centrais na instituição da linha de proteção cambial seja o investidor de portfólio, que tem no seu DNA a valorização da liquidez. O fato de sua presença nos mercados domésticos já ser muito significativa leva à conclusão de que a proteção está mirando um grupo específico cujos recursos seriam direcionados para os projetos de infraestrutura e transição ecológica, ao custo de uma proteção cambial adicional. O conjunto de investidores de portfólio no Brasil não possui instrumento específico de proteção cambial de seus investimentos, exceto aqueles que podem comprar no mercado ou no BC. Como são caros, inclusive por conta da taxa de juros básica elevada, eles se sujeitam, em maior ou menor medida, ao risco cambial. É isto, na verdade, que constitui o mecanismo de limitação da especulação cambial em momentos de intensas desvalorizações. A inovação da Fazenda, nesse caso, dará a um grupo de investidores de carteira o privilégio de se livrar da penalização da flutuação cambial; ou porque lhe permitirá comprar títulos com correção cambial, ou por lhes vender proteção cambial a preço subsidiado.

Uma outra preocupação com esta estratégia de de-risking é o seu custo fiscal, afinal, esta tem sido uma crítica recorrente aos esquemas tradicionais de financiamento do investimento, em particular aqueles originários dos bancos públicos. O somatório das linhas especiais – blended finance, empréstimo de liquidez e proteção cambial – tem, por definição, um custo fiscal. Mesmo a linha de proteção cambial com a interveniência do BID terá seu custo reduzido, mas não eliminado. Assim, a questão central é se esses recursos não poderiam ser mais bem utilizados. O dilema seria o de financiar um setor com as particularidades da infraestrutura e da transição ecológica com recursos externos bancados pelo de-risking vis à vis a mobilização da poupança financeira doméstica, envolvendo a ação articulada do mercado de capitais e dos bancos públicos.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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