Opinião
O caminho da verdade é o da alteridade, o avesso do narcisismo egoísta que nos sufoca
Contra os destrutores de diversidades, o pensamento plural, rico, sedento de vida, de conhecimento, de descobertas – sem dominação alguma
“Eu só sei criar na dor e na tristeza.”
Vinicius de Moraes, em entrevista a Clarice Lispector
O bom Vinicius vem em nosso auxílio, nestes tempos nebulosos, em que não nos faltam dor e tristeza, no Brasil, principalmente, mas também no mundo.
De fato, temos de lembrar que a criatividade está à espreita da nossa iniciativa, do nosso desassombro, da nossa coragem, em meio às trevas.
Em excelente resenha literária, publicada em CartaCapital, Fábio Mascaro Querido, professor de Sociologia da UNICAMP, comenta O sistema e o antissistema: três ensaios, três mundos num mesmo mundo, volume que contém ensaios de Ailton Krenak, Helena Silvestre e Boaventura de Sousa Santos.
Helena inova, ao classificar o atual estágio do capitalismo de “moderno-colonial”. O Brasil que o diga. No ano em que se comemora o bicentenário da independência, o País encontra-se reduzido, mais uma vez, à condição de colônia, fazendão agroexportador.
Quanto à contribuição de Krenak, Fábio Mascaro nota: “Tal como o lema dos zapatistas mexicanos, o intelectual indígena defende a construção de um mundo no qual caibam outros mundos.”
Que imensa necessidade de alteridade temos neste momento, em um mundo doente de narcisismo! Não é à toa que a mais cosmopolita das cidades, Jerusalém, onde coabitam, mal, mas em certa paridade, as três religiões monoteístas abraâmicas, tem seu estatuto especial – reconhecido pela ONU – diuturnamente violado por Israel, o aliado colonial do império decadente, na região.
O professor Mascaro observa o traço de união entre os três intelectuais citados: “No fundo, aos três interessa pensar os contornos de uma reativação da democracia desde baixo, ou seja, a partir da ótica dos oprimidos e de suas formas de perceber e atuar sobre o mundo… Cada qual à sua maneira, os três autores se situam, claramente, na contracorrente.”
Nos comentários na imprensa sobre a atual crise Rússia-OTAN, pode-se verificar quanta falta de empatia existe por parte do Ocidente com relação ao Oriente, inclusive entre cristãos, sendo rala e reles a solidariedade mesmo entre irmãos. A exceção, mais uma vez, é o Papa Francisco, legítimo diplomata, pacificador, herdeiro de Nicolau (diplomata do Vaticano), de Cirilo e de Metódio (criadores da gramática cirílica).
Em meio à histeria, porém, encontramos seres pensantes, que sabem criar justiça e paz, em meio à dor e à tristeza, como aplaudiria o Poetinha diplomata!
Com efeito, o Comandante da Marinha alemã, corajosamente, pediu respeito à Rússia. Teve de pedir demissão do cargo – pasmem o leitor e a leitora – mesmo estando em um governo supostamente de esquerda. Que triste espetáculo.
Pior, o almirante nada mais fizera do que ser respeitoso das relações internacionais, principalmente com um país que a potência europeia invadira em duas guerras mundiais, assassinando milhões de russos e russas, além de causar danos econômicos incalculáveis.
Na verdade, o almirante alemão demonstrara também grande realismo, tendo em vista que o próprio país jamais vencera uma guerra contra a Rússia.
Mas como tirar razão do governo alemão “de esquerda”?
O genocida brasileiro não atacou até a primeira-dama da França? (Todo covarde prefere atacar mulheres…)
Respeito é o que menos se vê na cena internacional – e nacional, no caso brasileiro.
A força e a ignorância são louvadas; as armas, enaltecidas; o roubo, legalizado. A justiça e a paz, vilipendiadas.
A demissão do almirante alemão recorda a citação do Eclesiastes, no Livro dos Elogios, de Leonardo Boff: “Havia uma pequena cidade de poucos habitantes: um rei poderoso marchou sobre ela, cercou-a e levantou contra ela grandes obras de assédio. Havia na cidade um homem pobre, porém sábio, que poderia ter salvo a cidade com sua sabedoria. Mas ninguém se lembrou daquele homem, porque era pobre. E a cidade foi tomada e destruída (Ecl 9, 14-16).”
Na mesma obra, Boff também cita um lamento dos maias centro-americanos, sobre a chegada dos invasores, desrespeitosos da cosmovisão alheia, manipuladores de religião, narcisistas que negavam a riqueza da alteridade (visão não muito distante da que acomete irmãos latino-americanos com relação à Nicarágua atualmente): “Ah! Entristeçamos-nos porque chegaram…Os mui cristãos chegaram com o verdadeiro Deus, porém isso foi o começo da nossa miséria, o princípio de nosso padecimento. Eles nos ensinaram o medo. Fizeram as flores murchar. Danificaram e engoliram nossa flor, para que só a flor deles vivesse. Esse Deus verdadeiro que vem do céu, só de pecado falará, só de pecado será o seu ensinamento.”
Ao contrário, o caminho da verdade é o da alteridade! O avesso do narcisismo egoísta, que, como o vírus, nos encerra, limita, sufoca – literalmente.
Contra os destrutores de diversidades, humanas e ambientais, o pensamento plural, rico, sedento de vida, de conhecimento, de descobertas – sem dominação alguma.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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