

Opinião
O braço armado do Estado
A polícia deve obedecer ao princípio da legalidade. Ser permissivo com abusos de autoridade abre portas para que outros abusos aconteçam


No âmbito da arquitetura constitucional brasileira, várias instituições possuem a competência de concretizar os comandos da lei. A redação do artigo 144º da Constituição estabelece, por exemplo, que a preservação da ordem pública, do cumprimento das leis, é dever das forças policiais.
A polícia é uma instituição de Estado e, evidentemente, deve obedecer ao princípio da legalidade, previsto no artigo 37º da Constituição. O princípio da legalidade é uma garantia de que tanto o Estado quanto os indivíduos possuem limites de atuação, respeitando liberdades e direitos uns dos outros.
O cumprimento da lei não é mera formalidade, é uma necessidade, uma vez que é fruto da vontade democrática e dá previsibilidade à ação dos agentes públicos e privados. Portanto, respeitar a legalidade é essencial para manter as condições de bom funcionamento da sociedade.
A polícia e, excepcionalmente, as Forças Armadas exercem o monopólio do uso legítimo da força, sendo um agente, quando necessário e cabível, de coerção sobre as pessoas. Para fazer valer o cumprimento da lei, a preservação da ordem pública, a incolumidade das pessoas e dos patrimônios, às forças policiais é prevista a possibilidade de uso de instrumentos de imposição da vontade, a exemplo de algemas e armas.
Se todos os agentes públicos devem obedecer às leis, com muito mais rigor e inafastabilidade devem seguir as normas os atores que, em razão da natureza de suas funções, podem fazer uso até de armas letais. O caso de Genivaldo de Jesus Santos, abordado no perímetro urbano de uma estrada federal por policiais rodoviários, mostra como o descumprimento da lei por agentes públicos traz danos, por vezes irreversíveis, à sociedade.
Santos pilotava uma moto sem capacete, uma infração de trânsito. A ação coercitiva dos agentes policiais devia ter obedecido ao princípio da proporcionalidade, em que os meios restritivos empregados devem ter uma ponderação em relação aos objetivos a serem alcançados.
Contudo, o que tivemos foi o emprego da força de modo excessivo e ilegal, com violência explícita e a configuração de uma câmara de gás em um carro da Polícia Rodoviária Federal, algo similar aos horrores nazistas. O resultado foi uma tragédia, uma vez que a vítima deixou esposa e filho ainda criança, e era a única fonte de renda de sua família.
Esse uso exacerbado de força policial é explicável pelo clima político que se instalou no Brasil, de “lei do mais forte”. Diversos estudos apontam que privilegiar uma lógica de “guerra” por sobre o legítimo processo investigatório atende a objetivos demagógicos, que buscam gerar medo na sociedade e perpetuar no poder quem oferece supostas soluções imediatas.
É só lembrar que, ao saber do caso de Santos, o presidente da República insinuou ser a vítima um “marginal”, fez comentários do tipo “não é a primeira vez que morre alguém com gás lacrimogêneo no Brasil” e plantou o pensamento de que quem defende Santos, na verdade, defendia “o lado da bandidagem”. Entretanto, à polícia compete exclusivamente cumprir as normas constitucionais, baseadas nos princípios da legalidade e da proporcionalidade. Para o resto do processo punitivo existem o Ministério Público e o Poder Judiciário, encarregados de garantir a sanção ao delito cometido. No caso, tratava-se de uma mera infração de trânsito.
O indivíduo que temos hoje à frente da Presidência da República fomenta o caos porque a instabilidade lhe é funcional. Ele ataca as instituições e as leis não por defeitos destas, mas por suas virtudes.
Esse procedimento indecoroso do presidente da República ganhou nova escalada nos últimos dias, com tresloucados discursos contra o STF e seus ministros. Assim, temos um quadro nacional muito grave, com discursos de violência que podem macular o processo eleitoral deste ano.
A Polícia Federal, responsável pela segurança de candidatos à Presidência nas eleições, este ano vai destacar 300 agentes para a função. A nítida preocupação da PF demonstra como o ethos da violência ameaça o próprio curso das campanhas e traz sérios riscos à vida democrática.
O justo e adequado cumprimento das leis é o nosso caminho para a paz. Ser permissivo com abusos de autoridade abre portas para que outros abusos aconteçam, por isso é necessário ter atitude firme, a fim de garantir que os agentes de estado, especialmente os armados, tenham uma atuação adstrita aos parâmetros legais. Só existe verdadeiro patriotismo com respeito às instituições da República. A Constituição é o nosso escudo contra arruaceiros, milicianos e demais criminosos. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O braço armado do Estado”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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