Amanda Claro

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Advogada em Direitos humanos e sociais formada pela USP e mestre pela Universidade de Westminster, no Reino Unido. Coautora do livro "Vidas LGBTQIA+: reflexões para não sermos idiotas". Mulher cis bissexual, atua há 14 anos com direitos da população LGBTQIA+, direitos das mulheres e luta antirracista.

Opinião

O aborto na mesa principal da Flip

A Nobel de literatura e principal atração do festival escreve sobre aborto sem meias palavras.

Annie Ernaux, escritora francesa laureada com o Prêmio Nobel de Literatura, foi uma das principais atrações da Festa Literária de Paraty. Foto: FLIP/Divulgação
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Ingressos imediatamente esgotados e briga por cadeiras no telão gratuito da Praça da Matriz em Paraty. O frenesi é para ver a recente vencedora do Nobel de Literatura, a francesa de 82 anos, Annie Ernaux. O detalhe ainda mais importante, porém, seria descoberto pelos desavisados em poucos minutos de atenção às suas palavras: Annie fala sobre aborto.

Autora do gênero de auto ficção, Annie narra sua própria experiência de aborto clandestino na França de 1963 no livro “O acontecimento” – antes da legalização, que ocorreu apenas em 1975. No livro, um passado francês com cara de presente brasileiro.

Mesmo curto – pode ser lido em menos de um dia -, o livro exprime um tempo que não passa: entre a ciência de uma gravidez indesejada e o alívio do aborto bem-sucedido. A narrativa do passado se mistura com notas de pensamentos da autora ao escrever 36 anos depois. Ela nos confidencia em um desses parênteses sobre a demora do tempo:

Sinto que o relato me arrasta e impõe, sem que eu saiba, um sentido: o da marcha inelutável da infelicidade. Me obrigo a resistir ao desejo de descer precipitadamente os degraus dos dias e das semanas, tratando de conservar por todos os meios – a busca e o registro dos detalhes, o emprego do imperfeito, a análise dos fatos – a interminável lentidão de um tempo que se espessava sem avançar, como o tempo dos sonhos.

Uma estudante de letras de 23 anos levava uma vida universitária típica: uma combinação única de estudo e prazeres. Annie não se sentia no amor e no gozo “um corpo intrinsecamente diferente do corpo dos homens” – até se descobrir grávida e saber imediatamente que não desejava seguir com a gestação.

Para introduzir sua saga, Annie transcreve trecho da enciclopédia Larousse de 1948 que enumerava as punições ao aborto na França, que nos soam muito familiares:

São punidos com prisão e multa 1) o autor de toda e qualquer manobra abortiva; 2) os médicos, parteiras, farmacêuticos e culpados de ter indicado ou facilitado essas manobras; 3) a mulher que provoca um aborto a si mesma ou que o consente; 4) a incitação ao aborto e a propaganda anticoncepcional. A proibição de residência pode, além disso, ser aplicada contra os culpados, sem prejuízo, para aqueles da 2ª categoria, da privação definitiva ou temporária de exercer sua profissão.

47 anos atrasado em relação à França, o Brasil ainda criminaliza o aborto, à exceção das vítimas de violência sexual, em casos de fetos anencéfalos e de risco de vida da pessoa gestante. Mesmo nestas hipóteses o Estado brasileiro vem atuando de maneira coordenada para impedir o acesso.

O serviço é territorialmente desigual: somente 31 cidades oferecem aborto legal, com a maioria dos hospitais no sudeste. E está na mira dos conservadores no Legislativo: de acordo com Gênero e Número, até setembro de 2021, todos os projetos que mencionavam a palavra aborto eram contrários à interrupção da gravidez, mesmo em casos previstos por lei.

O atendimento para aborto legal vem sendo boicotado pelo governo Bolsonaro. Um levantamento de 2020 identificou a manobra para redução ou indisponibilidade dos atendimentos com a desculpa da pandemia. Dos 76 hospitais que realizavam a interrupção legal de gravidez, pouco mais da metade a mantinham e diversos funcionários desconheciam sobre as hipóteses previstas em lei.

Os médicos do livro também soam familiares: recusam oferecer ajuda, preferem as próprias carreiras à vida de suas pacientes, e dispensam tratamento classista e violento. No Brasil, nem metade dos médicos residentes domina uso de medicamento indicado pela OMS para um aborto seguro.

Até mesmo a violência obstétrica – que o CRM recentemente negou existir – está presente no olhar atento de Annie às parturientes que com ela dividiram enfermarias. Gritos, grosserias e desprezo eram dispensados a todas: “A moça abortada e a mãe solteira dos bairros pobres de Rouen estavam no mesmo barco. Talvez tivessem mais desprezo por ela do que por mim”.

O destino de quase morte de Annie é o mesmo de muitas mulheres brasileiras que recorrem ao aborto clandestino para interromper suas gestações. Aquelas sem recursos para serem atendidas com cuidado e segurança em clínicas privadas, correm frequente risco de morte: 60% das pessoas que morreram em abortos clandestinos no Brasil entre 2009 e 2018 eram pretas ou pardas.

A experiência descrita por Annie reflete não só sua transformação pessoal, mas os sentimentos, solidão e angústia comuns a qualquer pessoa que gesta em um país que criminaliza o aborto. O texto de Ernaux causa arrebatamento idêntico ao que ela mesma confessa sentir ao ler sobre o assunto: “um sobressalto sem imagens nem pensamentos, como se as palavras se transformassem instantaneamente em sensação violenta”. As descrições literais e sem eufemismos causam embrulhos, ao mesmo tempo em que fascinam pela carência absoluta de uma literatura honesta sobre o tema.

Na Flip, Annie confessa a dor que aplacou ao escrever sobre seu aborto clandestino sem medir palavras. E ao fim declara, para ser ovacionada pela plateia em seguida: “o aborto não é sobre desejo, mas sobre querer ter uma vida tão livre como a que os homens podem ter”.

No Brasil de Damares, a curadoria da Flip exibiu orgulhosa e corajosamente uma mulher que escreve e fala sobre aborto a plateias imensas e emocionadas, transmitindo a Paraty e ao mundo as palavras diretas que o tema merece. O passado da França de Ernaux oferece uma janela para um futuro possível para o Brasil. Que não se demore em “interminável lentidão”.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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