Eloisa Artuso

Pesquisadora, educadora, designer estratégica e cofundadora e diretora executiva da Febre, plataforma de pesquisa, estratégia e conteúdo multimídia

Opinião

No debate sobre o clima, é preciso responsabilizar a indústria da moda

As emissões de gases de efeito estufa transformaram o planeta e os governos devem priorizar a equidade para evitar danos e sofrimentos irreversíveis

Foto: Martin Bernetti / AFP
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A ciência é clara: temos menos de 10 anos para mudar. De acordo com o IPCC, entre os anos de 2010 e 2019, a média anual global de emissões de gases de efeito estufa atingiu os níveis mais altos da história humana e sem reduções imediatas e profundas de emissões em todos os setores, limitar o aquecimento global a 1,5°C está fora de alcance. Por outro lado, há evidências de que a taxa de crescimento das emissões diminuiu depois desse período enquanto houve crescimento de ações climáticas. Ainda assim, precisaremos reduzir as emissões pela metade até 2030. O lado bom da história, é que podemos. 

O recém-divulgado relatório síntese do 6º ciclo de avaliação do IPCC nos deixa uma mensagem urgente: “Há uma janela de oportunidade se fechando rapidamente para garantir um futuro habitável e sustentável para todos”. Com essa informação, podemos fazer uma aposta otimista: temos ainda alguns anos pela frente para agir e isso nos dá um poder enorme, porque estamos vivendo na década da mudança, e o melhor, temos o conhecimento e as ferramentas necessárias para isso. Para ser honesta, nós nem precisávamos da ciência para nos alertar e trazer possíveis soluções, os povos originários, os quilombolas e outras comunidades tradicionais sempre souberam viver em harmonia com a natureza e de forma sustentável para todos.  

E se precisamos de mudanças urgentes e estruturais em todos os setores para diminuir drasticamente os impactos do processo de colapso socioambiental em curso, aproveito essa minha coluna de abertura para apresentar um breve panorama da indústria da moda pela perspectiva do clima, e também do gênero. Porque para mudar esse setor, precisamos enxergar o que acontece nos bastidores, antes das nossas roupas chegarem às nossas mãos até onde vão parar depois de nos desfazermos delas. A menos que consigamos lidar com a raiz dos problemas não conseguiremos criar soluções concretas para os assustadores desafios que nos cercam.

Trago essas três esferas entrelaçadas – clima, gênero e moda – porque no Instituto Febre, onde sou umas das diretoras-fundadoras, acreditamos que é preciso reconhecer que gênero está intimamente ligado ao clima. Compreender a crise climática sob uma perspectiva transversal e de gênero nos ajuda a entender vulnerabilidades específicas e traçar estratégias que possam alcançar as mulheres e outros grupos minorizados. 

Além disso, notamos que mesmo com todos os seus impactos, o setor da moda não é incluído com sua devida responsabilidade na agenda política quando se trata de abordar a crise climática. A indústria da moda contribuiu com aproximadamente 2,1 bilhões de toneladas de emissões de gases de efeito estufa em 2018, o equivalente a 4% das emissões globais. Para evitar o aumento de 1,5ºC e o agravamento da crise climática, o setor da moda também terá que reduzir suas emissões pela metade até 2030.

Trazer essa discussão para o contexto do Brasil também é muito importante, porque somos um país produtor e temos a maior cadeia completa da moda do Ocidente, desde a produção de matérias-primas, passando por um grande parque de confecção e semanas de moda até um forte varejo. Ao longo dessa cadeia têxtil e de confecção, a mão de obra feminina soma 60%. 

Temos também a Amazônia e o Cerrado, biomas que vêm sendo devastados pela produção agropecuária, que ao lado da soja e do milho, cultiva o algodão, commodity importante para o país, e cria gado não só para a carne, mas para o couro, que devido à grande demanda, não é um subproduto da indústria alimentícia, mas uma indústria que opera por si só. Segundo estudos, o desmatamento é um dos grandes causadores das emissões de gases de efeito estufa no Brasil. Em 2020, o desmatamento foi o principal fator a contribuir com o aumento das emissões, especialmente, por conta das mudanças do uso da terra nessas regiões.  

Então, lidar com a emergência climática é lidar com a nossa própria existência no planeta, e isso inclui os nossos hábitos de consumo, modelos de negócios e processos produtivos. Como diria uma propaganda da Bayer (dona da Monsanto): “o que a bolsa de valores tem a ver com uma plantação de milho? O que a roupa que você usa tem a ver com uma fazenda lá do interior do Brasil?” Veremos. 

Nossa sociedade de consumo está consumindo a Terra porque desenvolveu uma lógica que “justifica” a destruição dos meios de sustentação da vida de determinados grupos que são convenientemente considerados “dispensáveis”. E para continuar crescendo, é preciso criar zonas de sacrifício, ou seja, lugares considerados descartáveis ​​para a promoção contínua do crescimento econômico. O artigo “‘O racismo está matando o planeta”, diz que não podemos ter mudanças climáticas sem que haja as zonas de sacrifício e que não podemos ter zonas de sacrifício sem pessoas descartáveis, e não podemos ter pessoas descartáveis ​​sem racismo.” 

Apesar das abordagens interseccional e climática ainda não fazerem parte do dia a dia da maioria das empresas, essas são questões presentes na realidade da moda, onde as desigualdades provêm de camadas de opressão, que envolvem raça, classe, gênero e território. Vale lembrar que a mudança do clima afeta desproporcionalmente as mulheres, atingindo de forma mais grave aquelas racializadas e em contextos periféricos. 

As mulheres sendo a maior parte da indústria da moda, além de receberem menos do que os homens (como em qualquer outro setor), ainda são muito impactadas pelos processos de produção em seus territórios, em suas casas e em seus corpos. Em 2018, um estudo feito com mulheres expostas ao glifosato, agrotóxico destaque na produção de algodão, em Uruçuí, no sul do Piauí, região de cultivo de soja, milho e algodão, estimou que uma em cada quatro grávidas da cidade sofreu aborto espontâneo e que 83% das mães tinham o leite materno contaminado.

Marina Marçal, coordenadora de política climática no Instituto Clima e Sociedade, aponta em uma entrevista que as mulheres não têm tido acesso a recursos, tecnologias e informações, não só para se adaptar à crise climática, mas no meio da moda para, de fato, comandar os meios de produção e ditar o valor do produto da forma que gostariam, o que as submete, muitas vezes, às condicionantes que o mercado impõe. Isso significa que sem autonomia financeira e de conhecimento não alcançaremos a igualdade de gênero e sem justiça de gênero não combateremos de forma abrangente a crise climática. 

O relatório do IPCC também enfatizou: uma visão sobre as desigualdades sociais é fundamental. Por pior que seja, o momento de crise climática aponta uma rara oportunidade de seguir um novo caminho, onde as empresas não saqueiem a natureza para obter lucro e onde os governos invistam em comunidades saudáveis e seguras. Assim, minha postura otimista também traz uma pergunta fundamental: seremos capazes de agir individual e coletivamente, ao longo desta década, com a força necessária para reparar, regenerar, prevenir, adaptar e nos tornarmos resilientes aos impactos do clima, aumentando nossas chances, não só de justiça, mas de sobrevivência? 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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