Gustavo Freire Barbosa

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Advogado, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coautor de “Por que ler Marx hoje? Reflexões sobre trabalho e revolução”.

Opinião

No Chile, a nova Constituição e o furor reacionário

Coluna de opinião reacionária publicada na Folha de S. Paulo depõe a favor da nova Carta Constitucional chilena.

Celebração da reforma da Constituição chilena em Santiago, Chile. Foto: Pedro Ugarte / AFP
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Na tradição do direito constitucional, o surgimento de uma Constituição representa o marco normativo de uma nova organização social. Naturalmente, constituições não criam nada por si só, mas, quando promulgadas, costumam reproduzir em seu texto a correlação de forças do tempo em que entrou em vigor.

Em 1980, o ditador Augusto Pinochet impôs ao Chile sua atual Constituição. Sob o governo de Gabriel Boric, eleito na esteira de caudalosos protestos, ela deve ser sepultada. Algo que deveria trazer alegria mesmo ao democrata mais vulgar, especialista em arrotar frases feitas em “defesa da democracia”.

Alguns democratas, entretanto, estão além da vulgaridade. É o caso de Demétrio Magnoli, colunista da Folha de S. Paulo. Em 08 de julho, ele publicou o artigo “No Chile, a Constituição da nova esquerda”, cuja proposta, se aprovada, “destruirá o governo de Gabriel Boric”.

E de onde viria esse potencial destrutivo?

Magnoli se incomoda com a parte do texto que diz que “o Chile é um Estado social e democrático de Direito. É plurinacional, intercultural, regional e ecológico”. Segundo ele, “a Constituição emanada da Constituinte chilena é um retrato em 3 por 4 da nova esquerda: a coleção completa de suas utopias, doutrinas e dogmas”, uma vez que “não se contenta em listar os direitos dos humanos” e extrapola ao tratar da “empatia e respeito pelos animais”.

Magnoli também torce o nariz para o fato da proposta, reproduzindo outras constituições da América Latina, conferir à Natureza a condição de sujeito de direitos, incômodo que se soma ao trecho que prevê a proteção de povos indígenas, cuja autonomia e o reconhecimento enquanto nações, também inscritos no texto, não escapa ao seu sagaz progressismo, que, como veremos, chega a imputar à nova esquerda a pecha de “reacionária” (suponho que a velha esquerda, a quem Magnoli presta tributo indiretamente, seja o trotskismo do qual fez parte um dia).

“A política identitária esparrama-se por todas as esferas”, prossegue Magnoli, que se dá ao trabalho de quantificar seu desgosto, contando as vezes em que a palavra “gênero” aparece: trinta e nove. A “paridade de gênero” na administração pública e organizações não-estatais seria outra excrescência que, ao abranger órgãos de representação popular, “viola o direito dos cidadãos de escolher livremente seus representantes”. Nenhuma novidade para quem se notabilizou por usar argumentos semelhantes contra políticas afirmativas de inclusão racial. Ademais, para defender a “livre escolha” dos chilenos, o articulista precisa ignorar que quase 80% deles fizeram a livre escolha de trocar de Constituição.

Demetrio Magnoli, colunista da Folha de S. Paulo e comentarista da Globo News (Foto: Wikipedia).

As questões de gênero têm uma atenção especial de Magnoli. A previsão de que os tribunais “devem resolver com enfoque de gênero” seria uma “regra subjetiva que ergue o espectro da potencial inconstitucionalidade sobre qualquer decisão judicial”. Veremos mais à frente que a crítica aos “critérios abertos” é só uma maneira, um tanto quanto constrangida, de querer manter as coisas como estão.

Magnoli é contra a previsão constitucional de que haja um sistema de seguridade social que proteja as pessoas em condição de vulnerabilidade. Para que serviria a seguridade social então? Para proteger bancos?  No atual modelo adotado pelo Chile, sim. Nele a aposentadoria é administrada por entes privados que investem as contribuições em aplicações financeiras. As primeiras gerações que se aposentaram nesse sistema se depararam com uma aposentadoria inferior ao salário mínimo. Na onda de protestos de 2019-2020, esta foi uma das mais evidentes expressões do neoliberalismo chileno contestado nas ruas.

Para evitar defender a desgraça, Magnoli escolhe criticar o que virá em seu lugar.

Nem o feijão com arroz de qualquer projeto civilizatório escapa: Magnoli chega a ser contrário às previsões de liberdade de trabalho, de proibição da precarização do emprego e até de moradia digna. A educação pública também é algo que não conta com sua simpatia. Ao fim, anuncia que, uma vez aprovada, o Chile se tornará ingovernável, cumprindo a esquerda com sua missão reacionária (sic).

Já tivemos a oportunidade de analisar a constituinte chilena, mas sob lupas diferentes das usadas por Magnoli. Na ocasião, mostramos como o processo constituinte, embora fundamental, não pode jamais representar o teto das lutas emancipatórias. Constituições não impedem golpes. O golpe de 1973 contra Salvador Allende é uma das provas disso.

A real preocupação de Magnoli é com a expansão de direitos em detrimento da acumulação capitalista. Mas ao invés de sair em defesa desta, escolheu bater naquela. De forma envergonhada, parece preferir o texto anterior – o de Pinochet, ponta de lança do neoliberalismo na América Latina -, onde se tinha a garantia de não haver avanços. Ou mesmo uma Constituição nova, mas desde de que nada mude.

A Carta de 1980 ignora o acesso universal e gratuito ao básico do estado de bem-estar (educação, saúde, seguridade social). A proteção da propriedade privada e dos interesses do mercado financeiro são seus principais objetivos. Além da desigualdade galopante, alguns números ajudam a explicar as razões do povo ter ido às ruas: enquanto 85% dos chilenos não têm condições de pagar pela saúde, sua classe dominante acumulou o maior patrimônio da América Latina.

Se há desconforto com a nova Constituição, é com certeza menor do que o trabalho de defender a que ficará para trás. Ser contra a atenção aos necessitados, a extensão de direitos a minorias, a precarização de empregos e a moradia digna é uma maneira de se agarrar à herança de Pinochet, mas de forma edulcorada, escondida na preocupação com o “critério aberto às mais bizarras interpretações das maiorias políticas de turno”. Fantasiada, portanto, de “preocupação com a democracia”.

Em 2020 o Chile pediu um empréstimo de U$ 23 bilhões ao FMI para ajudar empresários. Apesar da quantidade dramática de pessoas vulnerabilizadas pela pandemia, o valor destinado a elas foi bem menor: U$ 830 milhões. Magnoli certamente não estaria incomodado se a nova Constituição utilizasse conceitos abertos para manter a população na miséria originada do modelo neoliberal desaprovado pelos chilenos.

E nem nisso Magnoli inova. Tão logo foi aprovada a Constituição soviética, o teórico alemão Karl Kautsky também reclamou do conceito impreciso quanto à definição de “capitalista”. Lenin assim lhe respondeu:

“Capitalista, vejam, bem, é um conceito jurídico impreciso, e Kautsky dedica algumas páginas a fulminar a ‘arbitrariedade’ da Constituição soviética. Esse ‘sério letrado’ permite à burguesia inglesa elaborar e aperfeiçoar durante séculos uma constituição burguesa nova (nova para a Idade Média), mas a nós, operários e camponeses da Rússia, esse representante de uma ciência servil não dá nenhum prazo. De nós exige uma constituição elaborada até os mínimos detalhes em alguns meses…”.

Lenin poderia muito bem estar se referindo a Magnoli quando, ainda em sua resposta a Kautsky, observa que “quando os juristas dos países capitalistas, completamente burgueses e na maioria reacionários, elaboraram no decorrer dos séculos ou décadas as mais detalhadas regras, escreveram dezenas e centenas de volumes de leis e comentários às leis para oprimir o operário, para atar de pés e mãos o pobre, para opor mil argúcias e obstáculos a qualquer simples trabalhador do povo, ah, então os liberais burgueses e o sr. Kautsky não enxergam aqui ‘arbitrariedade’! Aqui há ‘ordem’ e ‘legalidade’!”.

Não que a proposta da nova Constituição chilena tenha um pendor revolucionário. Longe disso, até pela própria natureza de constituições, que, numa perspectiva de fato revolucionária, devem ser encaradas muito mais como um meio de superação da ordem capitalista do que como um fim. Nesse contexto, Boric está mais para Michele Bachelet que para Salvador Allende.

É inegável, no entanto, que o incômodo de alguém de “missão reacionária” como Magnoli não deixa de depor a seu favor.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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