Frente Ampla
Neste 1º de Maio, saúdo quem não pode sonhar
A pandemia não provocou sozinha essa crise: foram um ministro e um presidente que guardam um profundo desamor pelas pessoas


Num dia desses, me perguntaram qual era meu sonho de profissão quando era criança…
O sonho é algo livre, que deveria ser impossível de controlar. Afinal, são sonhos.
Mas, a realidade é que eu não tinha sonhos, nunca vi isso na minha família. A preocupação era que ao crescer arrumássemos um emprego seja ele qual fosse, pois o trabalho realizaria nosso maior sonho: a sobrevivência.
De lá pra cá, muita coisa mudou. Começou-se a experimentar aos poucos outras e novas possibilidades. Vi pessoas iguais a mim, de origens parecidas, alçando lugares até então inimagináveis: filhes de porteiros e domésticas foram a universidade. Esta aqui, filha de uma auxiliar de enfermagem e mãe solo que manteve toda família, se tornou artista, intelectual, educadora, gestora e política.
Estávamos longe do fundamental, afinal o fim do genocídio, a educação básica de qualidade, moradia e o acesso ao lazer e a cultura, eram e ainda são um sonho não sonhado. Tínhamos garantido o ingresso na universidade, e a luta se tornara a permanência.
Qual não seria nossa surpresa, em 2021, no eterno retorno do mesmo, nos depararíamos com o velho cenário da sobrevivência, pior, com desemprego recorde e sem perspectiva de melhora.
A pandemia não fez isso sozinha: foram um ministro e um presidente que guardam um profundo desamor pelas pessoas. Eles devem ser pessoas que não aprenderam a sonhar, não pela impossibilidade como falei neste início de escrito, mas porque sonhos não habitam o vazio, o oco.
Neste dia das trabalhadoras e trabalhadores, quero saudar quem, mesmo sem poder sonhar, dignifica sua própria vida e/ou da sua família, colaborando com o sustento. Saúdo quem engrossa as filas do desemprego em busca do sonho de sonhar, quem sequer pensa que pode trabalhar por ser excluída da possibilidade de ser gente, como pessoas trans e pessoas em situação de rua. Quero saudar quem está firme no fronte da pandemia, profissionais de limpeza, coveiros, toda gente da saúde, saudar artistas e todo ciclo produtivo das artes que amargam da ausência da arte que transforma suas vidas com sustento e o sensível nas vidas alheias.
Nunca esquecerei de saudar os povos indígenas e africanos que foram escravizades, e que trabalharam arduamente e gratuitamente pra este projeto europeu de Brasil acontecer. Na época que faziam nem era considerado trabalho, e sim obrigação.
E lembrar que é daí toda origem de uma triste Nação que nunca pôde plenamente sonhar.
Para um recomeço que virá: reparação histórica desde já.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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