Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Negona

Ela foi chegando, chegando e acabou ficando. Ali encontrou casa, comida e muito carinho

Foto: Arquivo Pessoal
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Sempre teve cachorro na casa dos meus pais. Primeiro foi Joli, depois Tupi e finalmente Pink. Cachorro comia de tudo por lá. Tudo que sobrava do almoço e do jantar. Comia arroz, feijão, angu, osso de frango, muxiba de contra-filé. Até macarronada aos domingos, Joli Tupi e Pink comiam.

Uma vez por ano, o meu pai levava o cachorro num Posto da Prefeitura para vacinar contra raiva. E era só.

Cachorros na casa dos meus pais viviam solto no quintal e quando dava na telha deles, se enfiavam por debaixo do portão da garagem e alcançavam a rua. Circulavam pelo bairro, viravam latas, aprontavam das suas, mas voltavam. Sempre voltavam, isso quando não eram pegos pela carrocinha. Era um trabalhão resgatá-los.

Banho era no tanque, com água fria e umas esfregadas com sabão português. Isso, de tempos em tempos, quando estavam imundos, encardidos.

Joli e Tupi, me lembro bem, morreram atropelados. Pink, acredito que de velha. Eu estava morando a dez quilômetros de Belo Horizonte quando ela morreu, não sofri tanto.

Sofri muito foi no dia em que vi Tupi estendido numa mesa na lavanderia, o corpo já duro, os olhos abertos. Mas morto.

Tupi era o mais malandro de todos. Gostava de circular pelo bairro do Carmo e quando abríamos os olhos, aparecia uma meia dúzia de cachorrinhos com a cara dele, focinho dele. Tupi era marrom escuro, com sobrancelhas creme.

Tudo isso acima para chegar até a Negona.

Negona foi sendo adotada aos poucos por minha irmã. Ela circulava pelo condomínio em Três Marias, Minas Gerais, e foi chegando aos poucos. Chegando, chegando e acabou ficando. Ali encontrou casa, comida e muito carinho.

Não tinha uma semana que não chegasse no meu zap uma foto da Negona. Parecia que ela estava rindo o tempo todo, com a língua pra fora e os olhinhos meio fechados.

No ano passado, ela teve oito filhotinhos, cada um mais fofo que o outro. Não morasse eu a uns 800 quilômetros de Três Marias, teria ido buscar um deles, o mais pretinho de todos.

Uma de minhas filhas tem uma vira-lata chamada Cher. A outra tem a Shakira e corre uma piada interna de que eu queria uma fêmea de galgo só pra chamar de Lady Galga. Mas isso não tem nada a ver com a Negona.

Segunda-feira passava, passava pouco das oito horas da manhã quando piscou uma mensagem no celular:

Negona morreu atropelada!

Chorei muito quando criança vi a morte de Baleia, numa cena de Vidas Secas. Chorei também quando vi Tupi estirado em cima de uma mesa.

Não conhecia a Negona, apenas pelas fotos que chegavam toda semana. Meu plano era ir a Três Marias no inicio desse dois mil e vinte e três pra ver a Negona de perto, pra ela conhecer o nosso Canela.

Fiquei sabendo mais tarde que ela foi onde nunca tinha ido antes, na rodovia perto do condomínio, onde os carros passam em alta velocidade.

Soube também que ela foi enterrada em silêncio, debaixo de uma árvore, perto de onde morreu.

Dia desses vou lá ver onde ela está.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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