Opinião

Não seria mesmo Brasília uma ‘ilha da fantasia’?

Malgradi esses choques de realidade, reitero: vale a pena viajar

O ministro da Casa Civil, Rui Costa, e o presidente Lula. Foto: Sergio Lima/AFP
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“Ser carioca é não gostar de levantar cedo mesmo tendo obrigatoriamente de fazê-lo; é amar a noite acima de todas as coisas, porque a noite induz ao bate-papo ágil e descontínuo; é trabalhar com um ar de ócio, com um olho no ofício e o outro no telefone, de onde sempre pode surgir um programa; é ter como único programa o não tê-lo; é estar mais feliz de caixa baixa que alta; é dar mais importância ao amor que ao dinheiro. Ser carioca é ser Di Cavalcanti.”

Vinicius de Moraes
Viajar é um prazer inigualável, inclusive pelos riscos inerentes que o ato comporta à viagem.
Somos submetidos a inúmeras provas; muitas temos êxito em superar, outras não, sendo que essas últimas são as que mais nos ensinarão.
Viajar, portanto, é aprender; o que implica também ensinar, no dizer de Paulo Freire.
Paisagens nos estimulam a refletir, a nos dimensionar cosmicamente, em nossa pequenez e individualidade.
Viagens também nos permitem um confronto com a realidade.
O Ministro Rui Costa foi muito criticado por ter chamado Brasília de ilha da fantasia. Não seria mesmo?
Um exemplo: fala-se muito em integração latino-americana. Trata-se mesmo de preceito constitucional, previsto no artigo 4 da Constituição Federal.
Entretanto, tente ir de carro ao Uruguai.
Na Europa, passa-se de um país a outro sem parar na fronteira.
Aqui, não apenas de tens de parar (buscando aonde estacionar o carro por tua própria conta); preencher a ficha da imigração e apresentar uma tal “folha verde”, que ateste que tens seguro para o carro.
Sem a folha, não entras.
Ocorre que nos domingos e depois do horário comercial os lugares que as vendem estão fechados, de modo que tens de sair perguntando e ligando, para obter a referida folha, ao módico preço de 140 reais, por 5 dias de validade…
Ou seja, no papel, em Brasília, tudo está resolvido.
Na prática, na fronteira, tens de enfrentar uma “via crucis” burocrática.
Em outras palavras, os governos baixaram as barreiras, mas as seguradoras multinacionais estão acima deles e continuam a lucrar – e muito.
Pior, na fronteira Santana do Livramento – Rivera, o lado uruguaio te recebe com simpáticos tanques de guerra. Um mimo. Só comparável à fronteira entre a Rússia e a Ucrânia, talvez.
A cereja do bolo: em Santana, as migrações do Brasil e do Uruguai estão instaladas em… um shopping center…
Detalhe, em Santana, há vários prédios de propriedade da União, inclusive o mais bonito deles, modernista dos anos 60, da Receita Federal.
Se estamos pagando aluguel ao shopping, não sei, mas – seguramente – aquele não é o local mais apropriado para a instalação de um órgão oficial…
Vale notar que são inúmeros os órgãos federais instalados na conurbação Santana-Rivera, indo do
Itamaraty às Forças Armadas. Ninguém se dá conta desses absurdos? Não são relatados a Brasília?
É injusto chamar aquilo de ilha da fantasia, sem compromisso com as realidades locais? A quem beneficia a atual “integração”? Apenas às empresas?
Malgradi esses choques de realidade, reitero: vale a pena viajar.
Em Vulnerabilidade (editora Ideias & Letras), René Dentz cita Lacan, a propósito da alteridade: “É numa identificação com o outro que ele vive toda a gama das reações de impotência e ostentação, cuja ambivalência estrutural suas condutas revelam com evidência, escravo identificado com o déspota, ator com o espectador, seduzido com o sedutor.”
Dentz vai adiante e aprofunda o argumento, chegando ao campo das trocas espirituais: “Quanto mais alguém tem uma crença definida (ou uma convicção), mais deveria conhecer outras religiões, até mesmo para entender melhor a sua, e, sobretudo, para entender formas diversas de crenças e valores. Pensar a partir da pluralidade é mais rico, criativo, ético, humano e interessante.”
Por falar em ética, que interessante a postura do presidente Lula, chamando atenção para a absurda prisão do jornalista Julian Assange, que teve a coragem de denunciar ao mundo as terríveis violações de direitos humanos, cometidas pelos Estados Unidos da América no Iraque, no Afeganistão e em outros países em que promoveram invasões e golpes de estado, inclusive o Brasil, no golpe de 2016, iniciado em 2013, e ainda não de todo extinto, por intermédio da operação de cobertura: Lava Jato.
Como a Terra não gira, mas capota, na mesma semana em que Trump revelou que, se reeleito, teria invadido a Venezuela, para apropriar-se o petróleo venezuelano, comunicações descobertas da Lava Jato demonstram que os juízes e procuradores da 13a Vara Federal de Curitiba seguiam instruções de Washington, para destruir a indústria nacional de petróleo e construção civil.
A esse respeito, vale notar que em Che Guevara – A vida em vermelho (Companhia das Letras), Jorge Castañeda recorda como as petroleiras estadunidenses e europeias atuaram em conjunto com os respectivos governos para sabotarem o então recém-instalado governo revolucionário em Cuba:
Um testemunho oficial confirma que as empresas foram utilizadas para propiciar um enfrentamento com a Revolução. Provém do comentário que o representante da Royal Dutch Shell apresenta sobre uma reunião no Foreign Office, em Londres: ‘O sr. Stephens explicou que esperava que o governo de Sua Majestade se unisse aos governos da Holanda e do Canadá caso fosse adotada alguma ação diplomática conjunta. Considerou que, como o Departamento de Estado havia decididamente promovido a ação das empresas americanas como uma poderosa contribuição econômica para a queda de Castro, cabia a elas atuar primeiro, inclusive antes que os cubanos tomassem medidas específicas contra as companhias.’ (Foreign Office 371/148295, Record of Meeting, June 20 in Sir Paul Gore-Booth’s Room (secreto), p.8, 20/6/60).
Como já profetizara o Cristo, “a verdade vos libertará”.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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