Daniel Dourado

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Médico e advogado sanitarista, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP e do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris.

Opinião

Não se pode aceitar ‘fura-fila’ na vacina, seja pública ou privada

Permitir – e pior, incentivar – a formação de dupla fila é mais que antiético, é uma grave violação de direitos, escreve Daniel Dourado

Foto: Marcelo Piu/Divulgação
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O governo federal parece ter mudado o discurso e começa a reconhecer a importância da vacinação contra a Covid-19. Mas as declarações de Bolsonaro e do ministro Paulo Guedes revelam que eles mantêm o mesmo entendimento do início da epidemia no Brasil.

Depois de meses atuando para a propagação do vírus de forma criminosa, agora defendem a imunização da população com a mesma justificativa que usaram para boicotar as medidas sanitárias: “para a economia voltar a funcionar”.

É com esse pretexto que Bolsonaro apoiou a proposta de compra de vacinas por empresas privadas. Numa espécie de profecia autorrealizável, o governo que não cumpriu sua obrigação de comprar vacinas suficientes apresenta como solução a suposta ajuda do setor privado, que justifica a necessidade pelo fato de… o governo não ter comprado vacinas suficientes. E alegando que metade das doses seria doada ao SUS, ainda tentam convencer a população de que esse tipo de negociação seria uma grande vantagem.

Mas não é.

O cenário global atual é de escassez. Os imunizantes desenvolvidos em tempo recorde estão sendo produzidos para atender todos os países e, mesmo assim, não há doses suficientes. Por essa razão, o próprio laboratório negou a venda para as empresas defendida por Bolsonaro. Ainda é importante, contudo, alertar a sociedade brasileira para não admitir nenhuma tentativa de acordo dessa natureza.

Qualquer vacina comprada pelo setor privado é vacina a menos disponível para o público. Essa é a origem do problema.

A falta de vacinas em quantidade suficiente no mundo é particularmente crítica no Brasil. Hoje o país sequer tem as doses necessárias para vacinar os grupos prioritários definidos no plano nacional de imunização. Nessa situação, qualquer vacina que for comprada pelo setor privado é vacina a menos disponível para o público. Essa é a origem do problema.

 

A definição de grupos prioritários tem uma razão de ser. São as pessoas que estão em maior risco de serem infectadas pelo vírus ou de adoecerem de forma grave. O objetivo é salvar o máximo de vidas e reduzir a pressão sobre o sistema de saúde, já que o desastroso impacto da epidemia também pode causar a saturação da rede hospitalar, como temos visto em diferentes regiões do País.

Por isso, todas as vacinas disponíveis têm que ser adquiridas pelo governo brasileiro, e distribuídas exclusivamente sob critérios sanitário-epidemiológicos. Nessa corrida contra o vírus, o sistema de saúde não pode se dar ao luxo de permitir que nenhuma dose seja aplicada em quem poderia esperar mais alguns meses.

O argumento “quanto mais, melhor” não é verdadeiro quando se corre o risco de faltar vacinas para as pessoas mais vulneráveis, deixando-as mais tempo expostas à epidemia. A ordem da vacinação importa, e muito.

É pelo mesmo motivo que a intenção das clínicas privadas de comprar vacinas de uma farmacêutica indiana para vender no mercado brasileiro também não tem cabimento. Ainda que elas sejam obrigadas pelo ministério da Saúde a seguir a ordem do plano nacional, ao comercializar vacinas elas estariam imunizando um subgrupo dos grupos prioritários, introduzindo um critério inadmissível: poder pagar pela vacina. Ou seja, de maneira semelhante à proposta das empresas, isso criaria uma fila paralela num momento crítico da pandemia.

Vale lembrar que não existe espaço para escolha do governo federal na compra de vacinas. A obrigação do Estado de buscar os meios para garantir a saúde dos cidadãos é um dever constitucional. E não há emergência maior hoje do que a imunização da população. Permitir – e pior, incentivar – a formação de dupla fila de vacinação no curso da crise sanitária é mais do que antiético, é uma grave violação de direitos fundamentais.

Portanto, além de fiscalizar e coibir os casos de fura-filas que têm sido vistos em diversos locais, cabe às autoridades de todos os níveis de governo e à sociedade brasileira denunciar os indecorosos arranjos do setor privado para furar a fila do plano nacional de imunização que têm sido estimulados pelo governo Bolsonaro.

Neste momento, a única forma de ajudar é distribuindo vacinas seguindo a fila única de vacinação, gratuita, pelo SUS.

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