Opinião

Não lave as mãos (lembrando Pôncio Pilatos)

Somos cúmplices da asfixia social quando ouvimos os gritos de socorro do João Pedro, balbuciamos ‘que horror’ e seguimos mastigando o jantar

TANIA REGO/AGÊNCIA BRASIL
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A ingestão excessiva de água me desperta durante a madrugada. Ao voltar do banheiro, percebo que meu celular sinaliza mensagens. Vítima da ansiedade social exacerbada pelos dispositivos eletrônicos portáteis, vou conferir antes de voltar a dormir.

No grupo de WhatsApp, um rapaz, ex-funcionário do mercado financeiro, celebra a ausência de repercussões políticas pelas mobilizações contra a morte de George Floyd.

Foi o suficiente para me deixar rolando na cama, checando compulsivamente o celular em busca de manifestações de repúdio no populoso grupo. Nada!

Acordei e, incontinente, fui checar novamente. Permanecia aquele silêncio eloquente e enlouquecedor. Diversas pessoas daquele grupo postaram os chamados “textões” em suas redes sociais apoiando as manifestações, condenando a agressividade policial e racismo que causou a morte de George Floyd. Por que ninguém o confronta?

A atual vulgaridade do procedimento protocolar protofacista não desperta minha curiosidade, que segue com a omissão da audiência (quase 150 pessoas). Decidi apoiar minha experiência sociológica na hipótese da ausência de compreensão dos demais. Passei a instigar o rapaz para deixar mais clara sua posição. Suas mensagens vão escalando e alcançam apoteose em um áudio de vários minutos, com ofensas e palavrões dirigidos aos que se manifestam.

Não resta mais espaço para dúvidas sobre o que estamos ouvindo. Ao invés do esperado confronto, as pessoas passam a me enviar mensagens em conversas particulares, com críticas à posição do meu interlocutor, mas sugerindo interromper a discussão.

Prossigo com minha experiência. Mudo a abordagem para um confronto mais óbvio. Afirmo que racistas não são bem-vindos ali.

Uma pessoa, militante do movimento LGBT, encaminha ao grupo um vídeo satirizando quem nega os privilégios de ser branco. Na sequência duas pessoas negras relatam experiências pessoais terríveis, abjetas e emocionantes de racismo. Ainda assim, nenhum confronto direto, ao contrário, se inicia um grande “deixa disso”, balizado entre “isso não é tema para esse grupo” e o “ele é nosso amigo”.

Sofro uma epifania, que se revela em camadas como uma cebola ou a teoria do conhecimento hegeliana, do particular para o universal.

A identificação do vilão é óbvia quando os ressentimentos da mediocridade despertam o desejo de tirar proveito de um ser humano, negro, já imobilizado, ajoelhando-se sobre seu pescoço com suas mãos no bolso, na busca de uma efêmera sensação de superioridade. Mas qual o papel dos que apenas observam?

A contraposição entre o bem e o mal é a narrativa central que levam milhões de pessoas a cultuarem religiões, livros e filmes. Em termos de longevidade e popularidade, o cristianismo talvez seja a mais bem-sucedida delas. O homem que representa a bondade máxima foi morto da forma mais cruel.

Essa narrativa apresenta, no entanto, um personagem que poderia ter salvo Jesus, mas preferiu lavar suas mãos. A omissão de Pôncio Pilatos o alçou a algoz.

Lembrei do sentimento ao visitar Dachau, nas proximidades de Munique. O campo de concentração era uma indústria de genocídio, um esforço coletivo e social por definição. A visita afasta violentamente a reconfortante ideia do nazismo como resultado de um monstro que encarnava o mal, e a substitui pelo pavor da possibilidade de um mal inimaginável habitar o ser humano, enquanto espécie.

No memorial, que foi transformado o campo de concentração, é possível ouvir relatos dos primeiros soldados americanos a chegarem em Dachau. Junto ao espanto pela condição dos prisioneiros, a indignação com as pessoas que viviam nas proximidades e nada fizeram. Os soldados Aliados forçam diversos moradores dos arredores de Munique, que sentiam o cheiro de carne humana sendo queimada enquanto aos domingos se dirigiam a igreja, a entrarem no campo de concentração e confrontarem aquela realidade.

Ao explicar a banalidade do mal, Hannah Arendt aponta que as maiores maldades do mundo podem ser perpetradas por homens comuns, sem razões malignas ou intenções demoníacas, mas seres humanos que abdicaram totalmente da característica que define o homem como tal, a capacidade de pensar.

Para Arendt, a manifestação do ato de pensar não é o conhecimento, mas a habilidade de distinguir o bem do mal, de fazer juízos morais. Essa incapacidade de pensar permitiu que muitos homens comuns cometessem atos cruéis numa escala monumental jamais vista, como no nazismo. Sua esperança repousa no “pensar”, como poder para as pessoas evitarem catástrofes nesses momentos de dificuldade.

Nascer em condições genéticas socialmente privilegiadas, e ter sido um péssimo aluno no ensino fundamental, não são desculpa para desconsiderar que os direitos sociais de mulheres, negros, minorias e subalternos econômicos foram conquistados às custas de suor, gritos, lágrimas, hematomas, sangue e vidas.

Eu e você somos cúmplices da asfixia social quando, esparramados confortavelmente em nossas casas e na cordialidade explicada pelo pai do Chico, ouvimos os gritos de socorro do João Pedro, balbuciamos “que horror” e seguimos mastigando nosso jantar.

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