Josué Medeiros

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Josué Medeiros é cientista político e professor da UFRJ e do PPGCS da UFRRJ. Coordena o Observatório Político e Eleitoral (OPEL) e o Núcleo de Estudos sobre a Democracia Brasileira (NUDEB)

Opinião

Não foi por acaso que mataram Marielle

Fazer justiça para Marielle e Anderson passa necessariamente por derrotar a milicianização do Rio de Janeiro, de modo definitivo

Vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018. Foto: Renan Olaz/CMRJ Marielle Franco (Foto Renan Olaz/ CMRJ)
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O avanço nas investigações sobre o brutal assassinato de Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, confirma o que muitas e muitos têm afirmado desde 2018: a execução de uma vereadora negra, fenômeno de votos nas eleições de 2016, foi um dos principais símbolos da erosão democrática brasileira – iniciada com o golpe contra Dilma e sacramentada com a vitória de Bolsonaro em 2018. 

Esse processo começou com o questionamento à vitória eleitoral de Dilma; passou pela eleição de Eduardo Cunha à presidência da Câmara, pondo em marcha uma agenda de destruição de direitos e de sequestro do orçamento público pelas elites políticas locais com as emendas impositivas; se consolidou em 2018 com a intervenção federal no Rio de Janeiro, o assassinato de Marielle, a prisão ilegal de Lula, com sua exclusão do processo eleitoral e, finalmente, com a eleição de Bolsonaro. 

A resistência a todo esse processo, organizada pelo conjunto da esquerda brasileira em uma grande frente política e social que incluiu partidos, movimentos sociais organizados e também um conjunto de coletivos, redes, articulações em territórios periféricos que se identificam com a agenda antirracista, feminista, periférica e de combate às desigualdades econômicas. 

Não foi por acaso que mataram Marielle, uma mulher negra de um partido socialista. Ela simbolizava – se segue simbolizando – a força da interseccionalidade de raça, gênero e classe para o desenvolvimento da democracia brasileira. Quem a executou visava sim proteger seus interesses econômicos imediatos, como mostram as investigações, mas queria também fazer avançar um projeto político autoritário e violento no Brasil. 

As investigações concluíram que Marielle foi morta por uma coalizão criminosa que envolveu milícias na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, lideradas pela família Brazão e o poder público, especialmente na figura do chefe de polícia civil, Rivaldo Barbosa. Essa coalizão demonstra duas dimensões da crise democrática brasileira.

Primeiro, que o processo de corrosão social e institucional do Rio de Janeiro é profundo e não pode mais ser ignorado pelo conjunto da sociedade brasileira. Estima-se que as milícias controlem 57,5% do território da cidade do Rio de Janeiro, área  maior do que aquela controlada por todas as facções do tráfico juntas. A presença miliciana nas instituições ainda precisa ser mensurada com mais exatidão, mas a prisão de Domingos Brazão e Chiquinho Brazão demonstram que ela alcança todas as instituições fluminenses, em todos os níveis. 

A segunda dimensão é que essa coalizão pretendia – e ainda pretende – se nacionalizar a partir do bolsonarismo. Esse processo estava em desenvolvimento durante a gestão de Bolsonaro, entre 2019 e 2022. Algumas evidências disso saltam aos olhos: por exemplo, o controle territorial por grupos criminosos (garimpeiros, madeireiros) na Amazônia vai muito além do processo de grilagem e desmatamento tradicional na região, configurando-se como uma verdadeira milicianização da maior floresta tropical do planeta. Outro exemplo dramático foi a expansão dos clubes de Caçadores, Colecionadores e Atiradores, os CACs. 

A reconquista de uma dinâmica democrática com a vitória de Lula é uma chance de desmobilização desses processos, mas as resistências mostram que o problema é mais complexo e profundo. A lógica de milicianização vem avançando, em 2023 e 2024, em novas fronteiras dos conflitos sociais, como é o caso do movimento armado Invasão Zero, que assassinou a liderança indígena baiana Maria de Fátima Muniz, a Nega Pataxó, e conta com mais de 15 mil filiados armados e apoio aberto de partidos políticos e parlamentares. 

O projeto bolsonarista passa por consolidar um arranjo político e social que considere a violência como um modo legítimo de resolução dos conflitos, qualificando alguns setores do povo brasileiro não sujeitos de direitos: povos indígenas, comunidades quilombolas, militância social em geral, entre muitos outros. O sentido mais substantivo da execução de Marielle reside nessa perspectiva que anula o direito a vida de quem não aceita as desigualdades do nosso país. 

Fazer justiça para Marielle e Anderson passa necessariamente por derrotar a milicianização do Rio de Janeiro, de modo definitivo. E reconstruir a democracia brasileira exige que derrotemos esse projeto em todo Brasil, consolidando sua liderança como símbolo de uma democracia não apenas reconstruída, mas renovada no sentido de representar de fato a diversidade do povo brasileiro. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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