Não existe racismo estrutural exculpante, mas sim vergonha e reparação

Responsabilizar-se para 'voltar atrás' quando em vergonha por uma postura racista é uma prática antirracista

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Como um amigo de coração de Marielle Franco, sugiro uma reflexão à Antônia Pellegrino: se se tem compromisso com aquilo que se diz (ser antirracista), então a dignidade cobra um preço: o de “voltar atrás”.

Nesta semana, Antônia Pellegrino, para justificar a escolha de José Padilha como diretor da produção de uma série à memória de Marielle Franco, disse que conversou com muitas pessoas do mercado, mas não encontrou nenhum negro ou negra com as características que ela esperava: “Se tivesse um Spike Lee, uma Ava DuVernay…”.

A melhor análise sobre o racismo (inconsciente) na fala de Antônia Pellegrino foi feita pelo Jurista e filósofo Sílvio Almeida,[1] em sua página, no Twitter. A inspiração para a afirmação contida no título deste texto – não existe racismo estrutural exculpante – adveio da seguinte observação feita por Sílvio Almeida: “Pensar o racismo como estrutural é tirá-lo do campo da culpa (e da desculpa) e tratá-lo na dimensão da responsabilidade política.” E concluiu, dizendo que o racismo estrutural não pode ser usado como desculpa para ser irresponsável.

 

Dizer que não existe racismo estrutural exculpante, portanto, significa dizer, aqui, que o racismo não pode servir de desculpa para justificar o racismo, ainda que sob o pretexto de boas intenções.

Em outras palavras, o fato de não haver pessoas negras diretoras de cinema com carreiras consolidadas no monopólio do cinema brasileiro, sufocado a mãos brancas desde sempre, jamais será uma justificativa para não se oportunizar a direção de uma pessoa negra, sobretudo quando a história é tão cara aos povos descendentes de escravizados no país. Com o passar do tempo, com a disputa de narrativa a duras penas no país de supremacia branca, trata-se de um argumento ainda mais deslocado da realidade, desonesto intelectual e com uma carga racista relevante. Uma vergonha.

Com isso, pretendo, em poucas linhas, tratar de uma distinção (a meu ver fundamental) entre culpa e vergonha, porque, se se pretende ser antirracista, como se diz, então a desculpa somente pode ser verdadeira e sincera se feita com base na vergonha (e não na culpa). Eis a minha tese, inspirada em Jacinto Coutinho e Calligaris.

Isto porque, se a culpa confere à pessoa uma espécie de cheque pré-datado, que lhe permite “auto absolver-se”…, com a vergonha a coisa é diferente; e é diferente porque a vergonha cria uma cicatriz.[2]

Com isso, estou querendo dizer o seguinte: uma desculpa baseada na culpa nunca é suficiente, porque a desculpa baseada na culpa libera a pessoa para poder a praticar o mesmo erro, funcionando como uma espécie de Habeas Corpus com prazo determinado, que, quando ultrapassado o prazo, o levaria novamente à prisão.

Por isso, uma desculpa sincera não deve se basear na culpa, mas sim na vergonha, porque ela (a vergonha) cria uma cicatriz – que não sai – funcionando como um regulador inafastável para as condutas futuras.[3]

Por isso, se se desculpasse com base na vergonha, Antonia Pellegrino não teria coragem de, mais uma vez, tentar justificar o injustificável. Metaforicamente falando, a cicatriz a faria lembrar da sua atitude racista e colocaria nela um freio moral, o que não acontece com a culpa, que um simples ajoelhar no chão faz-lhe parecer suficiente. Não, não é!

A diferença entre o antirracista que se desculpa com base na culpa, para o antirracista que se desculpa com base na vergonha, é que o primeiro simplesmente afirma que não é racista, principalmente pelas redes sociais, ao passo que o segundo, se reconhece como um racista e se pergunta: de que modo eu propago o racismo e que atitude prática posso fazer para lutar contra isso?

Bem, eu tenho uma proposta à Antônia Pellegrino: em vez de agir como uma “antirracista” que, baseando-se na culpa, fica em casa pensando postagens para demonstrar ao mundo que não é racista, sugiro que aja como uma antirracista que, baseando-se na vergonha, volte atrás, reconhecendo que a indicação de alguém que contribuiu para o atual estado de elevação do autoritarismo não pode ser protagonista de um trabalho à memória de Marielle Franco.

E, embora seja uma prática antirracista a partir do lugar social de mulher branca oportunizar protagonismos a pessoas pertencentes a grupos sociais oprimidos, que são invisibilizados e apagados pelo sistema racista e colonial, a incoerência da escolha não tem a ver com o fato dele ser branco tão somente, mas sim o fato do diretor em questão possuir valores e biografia que não condizem com aqueles que foram ensinados e praticados por Marielle Franco.


Quanto ao erro e o perdão, de fato todos e todas erramos. E somos dignos e dignas de perdão! Mas, o perdão, como dito, só serve se for baseado na vergonha (e não na culpa), afinal, se fosse suficiente um simples pedido de desculpas, baseado na culpa, então o Bruno seria goleiro do seu time de futebol, caso tivesse um, caríssima Antônia Pellegrino?

Enfim: pela entrevista deduzimos que também não gosta de cancelamentos. Concordo com você! Aliás, acho que quem cancela diz muito mais sobre si do que o cancelado. Estamos juntos quanto a isso. Por isso, faço-lhe este pedido, até porque dizem que você é séria e antirracista, mas será? Veremos, pois a dignidade e o caráter cobram um preço.

É chegado o momento de saber se, de fato, o que dizes vale na prática. Não apenas pelas responsabilidades políticas quanto ao lugar de fala, ao racismo estrutural, mas também pelo respeito à memória e legado de luta de Marielle Franco!

Grande abraço!


[1] Almeida, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. Feminismo plurais. Coordenação Djamila Ribeiro. São Paulo: Sueli Carneiro, 2019.

[2] CALLIGARIS, Contardo. Quinta Coluna – 101 crônicas. Publifolha: São Paulo, 2008, p. 183.

[3] CALLIGARIS, Contardo. Quinta Coluna – 101 crônicas. Publifolha: São Paulo, 2008, p. 367.

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