

Opinião
Não é a polarização, é a violência
Lentamente, o ódio político transformou o adversário em inimigo. A política converteu-se numa espécie de guerra de extermínio


A tentativa de assassinato de Cristina Kirchner e a agressão ao irmão do presidente chileno, Gabriel Boric, representam a passagem ao ato depois de vários anos de retórica pública agressiva, intolerante, quase belicista. Lentamente, o ódio político transformou o adversário em inimigo e o inimigo em inimigo radical – o inimigo é a causa do meu ódio, ele obriga-me a odiar e por isso o odeio. A sua existência ofende-me, provoca-me, desafia-me. Passo a passo, a política converteu-se numa espécie de guerra de extermínio que ameaça o convívio entre compatriotas e impede qualquer conversa ou diálogo sobre o que se está a passar. Quando é que tudo isso começou? Bom, a resposta parece-me evidente – com a ascensão da extrema-direita, um pouco por todo o mundo.
Por favor, nada de confusões, o problema democrático não é a polarização, mas a violência. A primeira faz parte do jogo democrático, a segunda tenta destruí-lo. Desculpem usar uma palavra tão forte, mas sempre me pareceu um pouco idiota a queixa da polarização num regime presidencial disputado em dois turnos. Todos os sistemas presidenciais tendem para o duplo polo, tal como o sistema norte-americano, de onde toda a América Latina herdou a cultura política presidencial (por oposição à tradição parlamentar). Na verdade, não é isso que lamentam os aflitos da polarização. As queixas pretendem apenas disfarçar a amarga frustração da direita democrática de não ter um candidato competitivo. Percebo-os muito bem, mas, se me permitem argumentar, o problema é sério demais para se resolver esperneando. A primeira verdade que a direita democrática tem de enfrentar é que o seu problema não é o problema do sistema, não é problema do regime – é apenas o seu problema. E o seu problema é estar refém da extrema-direita e, nessa situação, dificilmente ganhará eleições no Brasil porque perderá o eleitor moderado, o eleitor que não faz prévias escolhas ideológicas e que aprecia tudo o que é equilibrado, comedido, sem rupturas. Esse é, verdadeiramente, o problema da direita democrática – como se ver livre de Bolsonaro. No entretanto, beberá o cálice até o fim.
Mas o mal, podemos dizer assim, é geral. Os sinais de violência no Chile e na Argentina são os mesmos que vemos na Europa. Na Itália, estamos à beira de viver algo nunca visto depois da Segunda Guerra Mundial. A extrema-direita italiana, provavelmente, vai ser o partido mais votado nas próximas eleições e o primeiro-ministro (neste caso, a primeira-ministra) sairá das fileiras do partido que reclama a herança política de Mussolini. Um pouco por toda a Europa as dificuldades da guerra e da economia deixam espaço livre à retórica extremista. Aqui em Portugal, o líder da extrema-direita, evocando um episódio histórico, sugeriu que talvez se devesse atirar o primeiro-ministro pela janela. E ria-se, ria-se muito com a piada. Nos Estados Unidos a derrota de Trump não derrotou de vez a extrema-direita. Recentemente, tivemos de assistir ao espetáculo inédito de um presidente norte-americano a fazer um discurso, inédito e solene, com o único propósito de lembrar ao Partido Republicano que o seu comportamento político ameaça a democracia norte-americana. A América, que sempre se viu a si própria como república exemplar, como “cidade no topo da colina” iluminando o resto do mundo, enfrenta um sério problema existencial.
Os dois incidentes, o do Chile e o da Argentina são, portanto, para levar muito a sério. Em particular no Brasil, aí tão perto. As eleições brasileiras serão seguidas com muito interesse em todo o mundo, não apenas pela importância do país, mas pelo que significam de avanço ou recuo da extrema-direita. O que se passou nestes últimos quatro anos foi mau demais. A política dispensou o adversário e criou o inimigo. A governação foi substituída pelo combate e pela agressão a tudo o que é diferente, o negro, o pobre, o comunista, o homossexual. A política da chamada “família tradicional” autorizou a desconsideração da mulher. Os militares, em aproximações sucessivas, abandonaram a ambição de representação da nação em troca de umas quantas sinecuras no governo. O que mais ouvimos nestes anos foram berros, berros contínuos que impediram a política de dizer algo de humano, algo capaz de acalmar a besta interior. A escolha nas urnas também se fará entre tolerância democrática e violência política. Há coisas que só os povos podem defender – e uma delas é a democracia. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Não é a polarização, é a violência”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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