Opinião

Na semana da Pátria, não caberia refletir sobre a dominação cultural do G7 no Brasil?

Os golpes de Estado no País teriam sido possíveis sem o controle cultural do País, exercido de dentro e de fora?

Foto Thomas Samson/AFP
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“… Para conservar o ‘gosto’, o ‘sabor’ da vida: refiro-me aos frêmitos íntimos que os pequenos prazeres provocam, às interrogações e mesmo às decepções, se as deixamos acontecer” – Françoise Héritier

Deixar a vida fluir não é fácil.

Muitas vezes determinamos um curso mental e queremos que ela o siga.

Quando lemos sobre a potência do Brics, o grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, recentemente ampliado com o ingresso de mais seis países, pergunto-me o quanto utilizamos um olhar cultural para dimensioná-lo, de fato.

Me explico: o quanto de hegemonia cultural do G7 persiste naqueles países.

No caso do Brasil, a dominação cultural do grupo das sete maiores economias é avassaladora: na música, no cinema, na TV etc.

Até gêneros musicais como o sertanejo, aparentemente “raiz”, foram hegemonizados pela country music estadunidense.

O lançamento de Barbie não poderia ser mais emblemático: as vitrinas, de Lajeado a Jundiaí, instantaneamente se coloriram de rosa.

Nesse sentido, vemos a vertente econômica do Brics ir de vento em popa, mas e aquela cultural?

Os golpes de Estado no Brasil, de 1954, 64 e 2016, teriam sido possíveis sem o controle cultural do País, exercido de dentro e de fora?

Na semana da Pátria (tão apagada, tão feriadão), não caberia refletir sobre esse dado e a retração dos aparelhos culturais no País?

Vale recordar que antes da pandemia só 10% das cidades brasileiras contavam com salas de cinema.

Depois, esse número certamente diminuiu, assim como as bibliotecas públicas (800 fecharam em todo o País) e as livrarias (as mais simbólicas delas encontram-se em estado falimentar).

Retomando o curso da felicidade, em Libertar o tempo (edições Paulinas), José Tolentino Mendonça nota:

“E quando é que chega a hora da felicidade?, perguntamo-nos. Chega nesses momentos de graça em que não esperamos nada. Como ensina o magnífico dito de Angelus Silesius, o místico alemão do século XVII: ‘A rosa é sem por quê, floresce por florescer/Não se preocupa consigo, não pretende nada ser vista'”.

Em Latim em pó (Companhia das Letras), Caetano W. Galindo recorda como o surgimento do Islão está ligado ao seguimento da uma vontade maior, a do mesmo Deus dos cristãos:

“No ano de 610, um pastor que costumava passar noites isolado numa caverna, orando e meditando, recebeu a visita do arcanjo Gabriel (Jibril, em árabe), que lhe informou que ele, o humilde Maomé, era o verdadeiro profeta de Deus. Desconfiado de sua visão, temendo tratar-se de uma manobra dos ‘djinns’, os ‘gênios’ que povoavam a imaginação dos habitantes da Península Arábica, o pastor, de início, relatou sua experiência apenas a um ciclo restrito de conhecidos. Em 613, no entanto, ele começou a pregar em público, dando forma a uma nova religião, que ficaria conhecida como islã, ou seja, ‘submissão’ (à vontade de Deus). Sua mensagem era simples e direta, e sua pregação foi incrivelmente bem-sucedida, unindo as tribos da região sob um mesmo credo, uma mesma fé…É importante ressaltar que Jesus de Nazaré é reconhecido como profeta no islamismo e que o Deus de Maomé era, e é, precisamente o mesmo Deus dos cristãos e judeus. ‘Alá’, que por vezes pensamos ser o nome de uma divindade, é apenas a palavra árabe que corresponde ao grego ‘Théos’, ao latim ‘Deus’ ao alemão ‘Gott’ e ao romeno ‘Dumnezeu’. Se você comprar uma Bíblia católica publicada em árabe para cristãos libaneses, vai poder ler toda uma narrativa de como Alá criou o mundo em sete dias, e o jardim do Éden etc”.

A propósito, em Franz Fanon: um retrato (editora Perspectiva), Alice Cherki, reflete sobre os mecanismos de dominação cultural-religiosa da metrópole sobre as ex-colônias:

“… A demonização do islamismo como religião e como cultura faz parte, pelo menos na França, da racialização que, aliás, deita raízes na história colonial. Ignora-se a imensa maioria dos muçulmanos da França, nem todos eles árabes, e nega-se a sua diversidade, inclusive no que concerne a uma prática religiosa ou a uma crença. A expressão ‘muçulmanos moderados’ floresce, como se o estatuto de muçulmano fosse avaliado pelos graus de uma escala em relação a uma radicalidade essencialista. Só muito raramente se diz ‘cristão moderado’ ou ‘judeu moderado’. Esse essencialismo sempre foi combatido por Fanon, desde ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’, em que escreve, a título de conclusão: ‘Eu, homem de cor, só quero uma coisa: que nunca o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a escravidão do homem pelo homem. Isto é, de outro sobre mim. Que me seja permitido descobrir e querer o homem, onde quer que ele se encontre.”

Citando Fanon, a autora indica o que seria para ele a condição ideal de diálogo intercultural, possível entre o Norte e o Sul:

“A cultura espasmódica e rígida do ocupante, uma vez libertada, abre-se finalmente à cultura do povo que se tornou realmente irmão. As duas culturas podem confrontar-se, enriquecer-se. A universalidade reside nessa decisão de assumir o relativismo recíproco de culturas diferentes, uma vez que exclui irreversivelmente o ‘status’ colonial”.

Alice Cherki complementa: “Pois se libertar da dominação colonial é tornar possível o enriquecimento recíproco de culturas e com isso uma nova universalidade, feita de transversalidades”.

Uma bela tarefa para o Br ampliado, na semana de nossa soberania!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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