Opinião

Brics ampliado: a diplomacia africana transborda o continente

Também da Guatemala vem um transbordar. Depois de tantos anos de política estadunidense, o povo resolveu ampliar seus horizontes

Lula na foto oficial dos Brics, na África do Sul. Da esquerda para a direita: Lula (Brasil); Xi Jinping (China); Cyril Ramaphosa (África do Sul); Narendra Modi (Índia); e o representante de Putin, Sergei Lavrov (Rússia). Foto: GIANLUIGI GUERCIA / POOL / AFP
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“Se a vida não transbordar não é vida” – José Tolentino Mendonça

Essa afirmação pode ser lida de muitas formas.

Interpreto como um chamado à originalidade, àquilo a que estamos vocacionados, para o que fomos gerados.

Nem sempre é caminho fácil.

Por exemplo, na vida de Oppenheimer.

Recomendo o filme (um desastre a dublagem; a película começa lenta também, mas ganha muita força depois; a biografia é ótima).

Ele entendeu que precisava salvar seu povo e, para isso, desenvolveu a bomba atômica, mas se recusou a ampliá-la a um cataclismo ainda maior, a bomba de hidrogênio.

Uma vez que perdera a serventia para o estamento militar, foi por ele rejeitado.

No Senado estadunidense, sua defesa foi liderada por um então jovem senador John Fitzgerald Kennedy (uma razão a mais para o desfecho de Dallas…).

O filme deixa claro que os alemães só perderam a corrida pela bomba por conta do antissemitismo nazista, que alijou do projeto os principais físicos alemães, muitos deles judeus.

A vida do físico judeu é um chamado ao pragmatismo, à liberdade, à tolerância.

Em Libertar o Tempo (editora Paulinas), José Tolentino Mendonça recorda a importância do tempo como fator de liberdade, de permissão de escolha, de indicação de rumo.

Nesse sentido, cita o sociólogo Edgar Morin: “Como toda a gente, tenho um horror total às esperas nos correios ou nos consultórios e não suporto as filas burocráticas a que nos obrigam. Contudo, não cesso de esperar o inesperado”.

Os chineses costumam dizer que o tempo não traz a solução: ele é a solução.

Isso pode ser interpretado de muitas formas: quando transbordamos nossos preconceitos, nossas limitações intelectuais, nossos medos e ansiedades.

Mas também vale para regras gramaticais, regiões geográficas e classes sociais.

São muitos os transbordamentos possíveis.

Por exemplo, a ampliação do Brics, com seis novos países, todos eles potências regionais importantes.

Mais, na declaração final do encontro, encontramos o apoio do grupo ao Sahara Ocidental, nação atualmente sob ocupação marroquina, e o lindo lema forjado pelos anfitriões sul-africanos: “Soluções africanas para problemas africanos.”

A diplomacia africana transborda o continente negro.

Também da Guatemala um transbordar. Depois de tantos anos de dominação hegemônica e política estadunidense, o povo guatemalteco resolveu ampliar seus horizontes, elegendo um sociólogo de esquerda.

O país centro-americano, com dois prêmios Nobel, o de literatura, com Miguel Ángel Asturias, e o da Paz, com Rigoberta Menchú, nos mostra que a cosmovisão dos Maia continua viva: a serpente emplumada que deu origem à vida, Quetzalcoatal, dá mais uma volta e um novo renascimento ocorre.

Com efeito, a chegada dos indígenas e afrodescendentes à política parece se consolidar cada vez mais em âmbito internacional, tanto local quanto nacionalmente.

Retomando a circularidade Maia e da Diáspora judaica, vale citar outra passagem daquela obra citada de José Tolentino: “Foi assim que numa das horas mais sombrias do século XX, no interior de um campo de concentração, a escritora Etty Hillesum conseguiu, por exemplo, protagonizar uma das mais admiráveis aventuras espirituais da contemporaneidade. No seu diário deixou escrito: ‘A grandeza do ser humano, a sua verdadeira riqueza, não está naquilo que se vê, mas naquilo que traz no coração. A grandeza do homem não lhe advém do lugar que ocupa na sociedade, nem do papel que nela desempenha, nem do seu êxito social. Tudo isso pode ser-lhe tirado de um dia para o outro. Tudo isso pode desaparecer num nada de tempo. A grandeza do homem está naquilo que lhe resta precisamente quando tudo o que lhe dava algum brilho exterior, se apaga. E o que lhe resta? Os seus recursos interiores e nada mais”.

Com efeito, vivemos em uma época de enorme volume de informações, muitas delas falsas, ou, no mínimo, imprecisas.

Como selecioná-las? Talvez, nosso ser mais profundo possa fazê-lo.

Por exemplo, vimos a imprensa internacional difundir que a água radioativa da usina de Fukushima, no Japão, não traria dano ao oceano, quando nele derramado.

Segundo ela, isso teria sido assegurado pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

Mas quem viu aquele documento comprobatório? Se a própria AIEA tem historicamente reiterado que não se pode aferir os danos que o depósito de contaminantes radioativos pode trazer ao mar, como acreditar na versão da imprensa?

Outro exemplo de discernimento, por incrível que pareça, vindo de um país sob governo da extrema-direita, a Hungria. A propósito da guerra na Ucrânia, declarou o chanceler húngaro: “Os EUA levam a Europa à autodestruição, em nome do apoio à Ucrânia. O mundo ri das sanções da UE à Rússia”.

Parafraseando o ex-presidente mexicano Lázaro Cárdenas, a propósito da proximidade geográfica entre os EUA e o México: “Pobre Europa, tão hegemonizada pelos EUA e tão longe de Deus.”

Conseguirá o Velho Continente, finalmente, transbordar para o Outro, o imigrante, o islâmico, o oriental?

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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