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Na Europa, regressam os muros, o nacionalismo e o medo

‘A solução para o êxodo de refugiados passa por enfrentar a questão com respeito pela responsabilidade que o direito internacional exige’

Fronteira entre Polônia e Belarus. Foto: Leonid SHCHEGLOV/BELTA/AFP
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Os muros são a vergonha da Europa. O projeto europeu já foi um símbolo mundial do diálogo, da abertura, da partilha pacífica de soberanias. A Europa foi chamada de pós-moderna, pós-nacional, pós-conflito. Uma das mais antigas e fortes aspirações do plano europeu foi a promessa de Europa sem fronteiras – justamente porque existia o muro que todos odiávamos. Hoje a Europa não é nada disso. Regressam os muros, o nacionalismo, a soberania, a desconfiança e o medo. Por todos os lados se constroem muros, muros na Croácia, muros na Eslovênia, muros na Áustria, muros na Grécia, muros na Hungria. A Europa construiu mais de mil quilômetros de muros fronteiriços, desde que caiu o Muro de Berlim. E agora mais muros na Polônia. Esta é a dimensão da vergonha. O sonho de uma Europa aberta parece estar moribundo.

A construção de muros corresponde a uma profunda mudança de cultura política. A Europa deixou de ser a voz da paz, a voz da cultura humanista, a voz do direito internacional. De repente, num curto espaço de poucos anos, mudou o discurso político, mudou a linguagem, mudaram as prioridades e até os princípios fundadores do projeto europeu parecem esquecidos.

Deixamos de falar do modelo social europeu, a coesão social desapareceu e o ideal de liberdade individual foi substituído pela obsessão da segurança.

O direito internacional passou a ser discutível e os direitos individuais deixaram de ser um ente absoluto para entrarem na esfera da contingência política e do interesse nacional. O poder moderador e arbitral da Europa, para quem muita gente se virava em tempos de aflição, deixou de existir. A Guerra do Iraque, a crise financeira e a crise dos refugiados aceleraram o movimento. A Europa humanista, a ideia de uma Europa fiel ao direito internacional, soçobrou. E justamente no momento em que o mundo mais dela precisava. Os muros são apenas o sinal mais visível dessa mudança política.

O primeiro grande teste à coesão europeia veio com a crise financeira e com ela veio também o seu primeiro e mais clamoroso falhanço. De um momento para o outro, sob a liderança alemã (e não apenas da direita alemã), a política europeia deixou de falar em emprego, em educação, em tecnologia, em ambiente, em energia renovável, para se concentrar num ajuste de contas histórico com as políticas sociais. A austeridade econômica constituiu-se então como única resposta redentora. O impacto dessa política no projeto europeu está ainda bem presente – a periferia ressentida com o centro, o Sul desconfiado do Norte, os pequenos países desiludidos com os grandes. A cizânia não veio de fora, mas de dentro – e motivada por um grave erro de liderança da Alemanha.

Depois da crise financeira vieram os refugiados, cujo problema, na verdade, nasceu antes, com a invasão do Iraque. A chamada “guerra global ao terror” não conteve o terrorismo, mas espalhou-o, até nos chegar em casa. Vinte anos depois, o mundo tem mais terrorismo, mais medo e mais refugiados. As liberdades públicas passaram a ser vistas como um problema e novas leis securitárias trouxeram novas instituições estatais e com mais poderes de vigilância, de controle e de punição. A crise dos refugiados de 2015 veio confirmar a desgraça que, antes, se anunciava. Regressaram as fronteiras internas, regressaram os muros fronteiriços, regressou a xenofobia e, 50 anos depois da Segunda Guerra Mundial, a extrema-direita sente-se finalmente legitimada a dizer publicamente o que pensa.

Não sou ingênuo, bem entendido, e acredito que a crise de refugiados na fronteira polaca com a Bielorrússia tem elementos de provocação. Sim, o regime ditatorial pode estar a usar os refugiados como instrumento político contra a União Europeia. Mas isso não retira nada ao que fica dito. A solução europeia para o êxodo de refugiados não passa pela construção de muros, mas por enfrentar a questão com respeito pela responsabilidade que o direito internacional exige a todos os Estados que assinaram a convenção internacional de refugiados. Esse é o único comportamento compatível com uma posição de autoridade moral nas questões humanitárias globais. A posição de indiferença compromete a ­reputação e o prestígio da Europa, de uma certa ideia de Europa que tinha uma posição firme na defesa da paz, nos direitos humanos e no direito internacional. Essa política triste de construir muros fronteiriços é a política do medo, da desconfiança, da autoridade securitária que mais tarde ou mais cedo se tornará autoritária. Não, não é uma política decente. O projeto europeu não nasceu para construir muros, mas para derrubá-los.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1184 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE NOVEMBRO DE 2021.

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